quarta-feira, 16 de setembro de 2020

 

ARTE MALUNGA: sustentação ideológica e financeira

Ivonete Aparecida Alves  - Agbá do Mocambo Nzinga

 

... A perversidade do caso brasileiro

 

Na minha infância urbano rural, eu ficava dias desolada olhando a pobreza da nossa casa. Trabalhávamos muito, eu e minhas irmãs desde muito pequenas. A casa literalmente caindo aos pedaços não tinha luz elétrica, o forno do fogão não funcionava e o fogão a lenha ardia os olhos da gente quando a gente assoprava para avivar o fogo. Então a parte boa era o quintal de casa, repleto de frutas nas árvores.

Me criei em cima das árvores. O pé de goiaba tinha galhos grossos e comportava meu peso muito bem. As ameixeiras amarelas permitia que eu passasse de uma árvore para outra, sem ter que descer no chão.

Eu queria ter coisas além daquelas que matavam minha fome de comida. Queria poder usar uma roupa que não tivesse sido de muitas outras pessoas antes de mim. Um sutiã com elástico que prestasse e não fosse preciso dar tantos nós para ficar firme. E ainda recebia um monte de críticas porque o sutiã cheio de nós aparecia por debaixo da blusa.

Cresci sem poder solucionar a pobreza material nossa. A busca pelo trabalho foi outra luta enorme, pois uma menina preta que tinha estudado não faz diferença alguma numa comunidade pobre, sem os “quem indica”. Os dedos milagrosos que mantiveram a ideologia escravocrata.

Foi preciso aprender: nós pretas por nós mesmas. O desejo que algumas pessoas manifestavam para tentar entender nossa causa era pura falsidade. É um desejo para dirimir a culpa. Como continuar criando histórias falsas sobre nossa preguiça, nossa indolência se testemunha quem trabalha duro e ainda assim chafurda na pobreza?

Mas demorei algumas décadas para deixar de dar importância para as ausências. O que importa é a presença: a presença da sabedoria dos matos e ervas; a sabedoria da transformação do lixo em arte; a sabedoria sobre as técnicas sobre o uso de elementos da natureza; a sabedoria da cura do corpo e do espírito.

Economia de recurso. Economizar roupas usando roupas já usadas. Economizar água. Reter a umidade na terra. Usar os tijolos desprezados, cultivar os terrenos desprezados. Plantar e colher o de comer. Fazer sombra ao invés de climatizar artificialmente. Deixar o sol entrar, ao invés de ligar a lâmpada. Afinal cresci sem ter luz elétrica em casa.

 

 

ARTE MALUNGA com despojos

Despojaram uma grade na caçamba. Obra de arte. Despojaram um arco com uma base sintética. Obra de arte. Despojaram uma tela enferrujada: base para outra obra de arte.

Mas o estudo com as tinturas naturais esteve na base das  produções com adinkras. Foi muito difícil estudar as maneiras de usar a simbologia adinkra, respeitando toda uma história desta simbologia.

Então usei urucum. Usei açafrão e tintura de angico. Terra roxa de Iepê.

 Obra: A KILO roxo

obra e foto Ivonete Alves

Esta obra foi produzida sobre uma tela de janeira encontrada numa caçamba no centro de Presidente Prudente. Foram utilizadas 140 abayomis, e tecidos cortados e amarrados no telado. O símbolo adinkra usado foi o Tabono (símbolo da força, confiança e persistência).


Obra: Fofoo

Eta obra foi produzida sobre uma moldura de aço encontrada tem muitos anos. Esteve pelo quintal e já serviu de forma para peças em papel-machê. Aqui ela foi preenchida com a tela para galinheiro, presa por tiras de malha. em seguida foram aplicadas abayomis em torno o contorno do símbolo adinkra. o centro foi preenchido por tiras de malha verde.
o símbolo Fofoo (símbolo da necessidade de evitar o ciúme e a inveja) foi recortato em tecido de malha, a nossa malunga Alexandra costurou, preenchi com fibra sintética e depois apliquei pedaços de uma saia adquirida em um bazar da pechincha.


 

RECEITAS QUE COMPÕEM A BASE DAS PINTURAS DE ADINKRAS AQUI ILUSTRADAS

Açafrão

Pode ser o açafrão já em pó ou os tubérculos.

Os tubérculos devem ser batidos no liquidificador com um pouco de água. Coe e teste na folha. Eu consigo um pouco mais de cor deixando o pó no álcool, que também é conservante.

O açafrão moído também serve para tingir tecidos de algodão, mediante processo de fervura.

Símbolo adinkra pintado sobre papel Fabriano colorido com açafrão


 


Terra

Dissolva a terra na água e teste a cor e textura que deseja. Coloque um pouquinho de cola de boa qualidade para evitar que a terra solte da folha.




 

Urucum

Deixei as sementes de urucum no álcool por algum tempo. Na hora de aplicar a tintura no papel, eu usei também algumas sementes para conseguir uma coloração mais intensa no papel.

 




Cascas de beterraba

Usei as cascas de uma porção que cozinhei para a salada de beterraba. Amassei, apliquei com o pincel e depois fui colocando uns pedacinhos da casca para conseguir um tom mais forte em alguns trechos do papel Fabriano.

Funtunmmireku Denkremmireku: símbolo adinkra (compartilham um só estomago , porém brigam pela comida). Símbolo da unidade na diversidade.



Vamos ter uma postagem sobre os adinkras e também sobre as técnicas de produção dos trabalhos.

Então começe pesquisando e juntando material para produzir arte negra com os despojos e assim garantir que suas crianças e todas as pessoas tenham acesso a ela. É muito inundar nossas periferias com arte de boa qualidade. 


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