quinta-feira, 21 de julho de 2022

 

FORA PANDEMIA DE GENTE RUIM!

 

Queremos sair da escravização

Teremos Palmares, Palmares de novo

Com raça, negritude

Palmares do povo!

 

Queremos nossos meninos

Brincando a liberdade

Sem ter que morrer por ela.

 

Desejamos tudo que por séculos lutamos

Mas sem tanta dor, sem tanta luta

Sem nenhum luto!

 

Aquele cheiro de alecrim do forno

Aquela brisa intensificada pelas folhas de chás

Aquele cheiroso odor de terra

No alto ou no pé da Serra.

 

São loucos quase todos os homens negros

Sobreviventes das mães pretas em seus partos

Sobreviventes de pagar os patos

Dos repastos proibidos ao seu paladar

Sobreviventes de tantos holocaustos!

 

São loucos os jovens negros

Que cheios de tantos enquadramentos

Descontam sua dor abandonando as crias

Treinados por séculos como reprodutores

Não querem, não aprendem a chorar suas dores

 

As sinapses cegas de seus cérebros aviltados

Confundem opressão com sankofar

“Oh menino! Me dê cá a sua mão!??

“Cala a boca velha, se chegar mais perto, eu vou te matar!!!”

 

Matam tantos sonhos de carinho

Correm loucos pra longe do ninho

Voltam tontos, drogados, bêbados

Espezinhados e cheios de espinhos!

 

Quebrar o círculo vicioso

Deste racismo imposto, danoso

Necessita princípios, trabalho duro

Junção de sabedoria, recursos, política

Estratégias... algumas tanchagens

 

Remédios para o corpo, para o espírito limpar

Toda energia deletéria

De uma Terra Onilé agredida por tanta brancura

É feio, terrível acalentar a feiúra!


“Gente é pra brilhar!!!”

Em casos assim, só a morte do algoz pode

Trazer a cura!!!

 

 


terça-feira, 22 de março de 2022

 As Bonecas Abayomis no Mocambo Nzinga


Apreciadas por meus olhos no COPENE em Florianópolis, no ano de 2012 eu já tinha ganhado uma de presente, mas não prestei a atenção devida a esta boneca. No COPENE uma quilombola produzia e comercializava as bonecas de nós. Fiquei impressionada com a variedade de cores, com as inúmeras possibilidades de combinações e a rapidez com que ela fazia as bonecas.

Mesmo assim foram alguns anos ainda para que eu me sentisse preparada para aprender a produzir as bonecas Abayomis. Várias histórias acompanhavam a criação da boneca e uma destas versões acabei compartilhando, antes de estudar a polêmica que suas iniciadoras na confecção delas acabaram envolvidas. Lena Martins como iniciadora dexou um legado: "as bonecas pretas Abayomis são para empoderar as mulheres pretas". E foram criadas no Brasil, nos anos 1980.
Assista um pouco desta história:
https://www.youtube.com/watch?v=8SSuiP48dYg

Enquanto fui aprendendo a produzir as boencas Abayomis, eu também avançava na Curadoria de uma Exposição com peças afrocentradas, uma série que chamei de Arte Malunga, que pode vir a ter quantos Atos forem necessários ou desejados Já na "Arte Malunga Primeiro Ato" estava presente com força as Bonecas Abayomis.

Obra: AKilo Roxo - Exus e Pombas-Gira


Foram oito anos de pesquisa, estudos e anotações para conseguir compor uma Exposição com 28 obras produzidas com base nas bonecas Abayomis. Para atingir a meta de produção das quatro mil bonecas Abayomis, que calculei como necessárias para montagem das obras precisei treinar e coordenar o trabalho de outras mulheres pretas.

Este processo todo foi fundamental para colocar na vista das pessoas e nas mãos daquelas que enxergam com as mãos estas Artes Malungas





quarta-feira, 30 de junho de 2021

 

BONECAS NZINGA

Por Ivonete Ap. Alves – Agbá do Mocambo Nzinga




Em 2009 quando iniciamos o trabalho com arte e cultura afro-brasileira  aqui em Presidente Prudente/SP, nossa intenção era ensinar um pouco sobre a confecção das máscaras étnicas.

A sessão de cinema no sábado de noite deixava várias atividades para serem organizadas no domingo pela manhã. Neste movimento, algumas crianças iam chegando e daí começavam a pedir para fazer alguma coisa.

A quantidade de peças coloridas, linhas, livros, revistas, tecidos no mesmo espaço despertava nas crianças um desejo para usar um pouco de tudo aquilo. Foi com uma revistinha que ensinava fazer bichinhos de pedrarias (miçangas) que um primo e uma prima começaram a produzir artesanato por conta própria.

Eu já ensaiava a produção de algumas bonecas. Assim, foi a continuidade do processo fazer as primeiras bonecas. A gente costurava tudo junto. Muitas vezes fazíamos somente a cabeça da boneca. Algumas crianças de famílias inter-raciais queriam produzir bonecas de pele mais clara, fazendo com que nós fôssemos atrás de tecido e cordões que ajudassem a compor o  corpo da boneca.



Boneca Nzinga só com a cabeça formatada


Materiais utilizados na produção das bonecas Nzinga

- cordões  de algodão redondo (bege)

- malha em diversos tons (do preto ao bege)

- tecidos coloridos para produção de roupas

- fibra natural ou sintética para montagem da cabeça

- sianinhas coloridas

- fitas de cetim de várias larguras

- rendas coloridas de várias larguras

-linhas de crochê

- lãs coloridas onduladas, frizadas, aveludadas

- cabelo para boneca do tipo espaguete

- contas coloridas

- miçangas coloridas

-arame ou fios de cobre

- tintas relevo para olhos e boca (branca, vermelha, preta, marron e roxa)

 

Material permanente

-tesoura comum de bom corte

- tesoura de picotar

-alicate  de bico fino

-agulhas para costura a mão de vários tamanhos e medidas de linha

- agulhas de crochê

 

 

Outros componentes

- argolas para chaveiro

- fios de nylon (de 0,20mm até 0,35 mm)

- palito de dente para fabricação de rosetas de fitas de cetim

 

Modo de produção das Bonecas Nzinga

 

São bonecas que têm de uns 8 até uns 20 centímetros de comprimento total. Foram criadas em Oficinas Coletivas, portanto desde seu início elas representam diversidade de peles negras, e algumas não negras, que provieram de famílias inter-raciais.

Assim, escolha a cor de sua boneca. Desde o tecido preto até qualquer outra cor. A gente indica que esta primeira boneca tenha uma única cor.



Bonecas com olhos e boca marcados com tinta relevo

Montagem da cabeça

Recorte um círculo para montar a cabeça.

Alinhave toda a borda do círculo usando ponto alinhavo. Você coloca a agulha na borda do círculo e a ponta dela só vai para a frente. Assim, quando puxar vai franzir a borda e fechar o círculo.

Coloque fibra dentro e vá ajustando até fechar e ficar bem firme a bola. Você vai poder ajustar se quer um rosto redondo ou mais alongado na hora de costurar a cabecinha da boneca.


Círculo já alinhavado   - Preenchido com fibra sintética



  
  Faixa maior para formar as pernas da Boneca e faixa menor para formar os braços

Depois de montado o corpo, coloque um pedaço de espuma abaixo da  cabeça para formar o centro do corpo:
           

Base do corpo e base com a  espuma


Montagem do corpo da Boneca

Para fazer a base da boneca você vai precisar de duas faixas de malha preta ou da cor que você tiver escolhido. Lembre-se de que os cordões também podem ser usados para compor bonecas de outras variedades de pele.



A Nzinga grávida ou Nutridinha

Com a base do corpinho já pronta, você faz uma bolinha e preenche com fibra, até que fique bem firme.

Coloque a bolinha, que vai representar a gravidinha na base do corpo da boneca Nzinga.

O vestidinho desta boneca pode ser feito com um tecido mais fino, de maneira que o objetivo de trabalhar com as fases da vida, observando a Nzinga grávida, possa ser atingido

E se, além de grávida esta boneca também fosse de cabelos grisalhos?

Quais histórias poderiam ser criadas para esta boneca?

Como podemos transformar uma boneca em um personagem?

E se a Boneca representasse uma criança e se esta criança estivesse grávida?

Alguém conhece uma história que possa ilustrar uma situação assim?



Base de uma gravidinha

Gravidinha pronta com os olhos e a boca bordada


A variedade de cabelos e penteados: marcando gerações

Entre as mulheres Ndebele na África do Sul, o penteado, além de outras marcas identitárias, compõem a aparência, que difere uma menina de uma adolescente e esta das mulheres adultas. De cabelos longos na infância, a mulher mais velha fica com pequenos blocos de cabelo que indicam a qual geração pertence.

Na diáspora africana, o cabelo crespo representa uma coroa de rainha e desperta profunda admiração daquelas mulheres negras que já conquistaram um certo grau de empoderamento.

Ao produzir as Bonecas Nzinga utilizando as marcações de penteados e diferenças de cores, nós contemplamos uma boa diversidade para os penteados afro. Faça sua boneca e inove!


 
O uso de adereços no cabelo já muda muito o visual da bonequinha



                              
lãs e cabelinhos para produção do cabelo das bonecas Nzinga



Gosto muito desta lã, que deixa o cabelo da Boneca com aparência dos Dreads Looks.

Então pegue o material de costura e produza suas bonecas. Quanto mais você exercitar, melhor ficará sua produção.






                                           





         
 
                                                                              


  
 





terça-feira, 13 de abril de 2021

 

ARTE MALUNGA 3° Ato – Arte Negra Ancestral e Contemporânea –  Percurso formativo e criativo

Este Ato contempla algumas demandas do  Projeto de Doutorado pela Faculdade de Educação da UNICAMP: “EDUCANDO A NEGRITUDE EM TRÊS OU MAIS GERAÇÕES NAS FAMÍLIAS NEGRAS EM UM MOCAMBO



                               



As mulheres negras e seu protagonismo na educação familiar e social”

 Projeto de Pesquisa submetido ao CEP – Comitê de Ética em Pesquisa – UNICAMP – Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade Estadual de Campinas – Plataforma Brasil. CAAE: 12928419.0.0000.8142 em resposta ao Parecer 3.403.892/2019.

Doutoranda: Ivonete Aparecida Alves Orientadora: Âgela Fátima Soligo


Desde 2006 que produzo máscaras étnicas inspiradas em originais africanas, à partir do acervo do Museu Afrobrasil, na cidade de São Paulo/SP. Outros museus espalhados pelo mundo, que possuem acervo digital foram sendo consultados e seus acervos apreendidos por uma ótica que não a dos usurpadores que constituíram estes museus. A iconografia africana e afro-diaspórica também chega através de reportagens, livros, artigos publicados, monografias, dissertações, teses e catálogos de Exposições. Os catálogos publicados por Museus brasileiros, de forma geral, são cuidadosamente editados.

A riqueza iconográfica das obras de arte africanas e afro-diaspórica me levou a reproduzir, com proposital fidelidade várias peças que fui estudando. A visão da peça nunca me satisfez, diante do enorme processo de negação sobre as constituições culturais do povo negro. O vazio artístico negro em que vivi, apesar da riqueza natural que pude desfrutar, fui preenchendo com a confecção destas peças.

O critério que levei em consideração, em primeiro lugar, foi a beleza da peça. Ao tentar imitar também o gesto na confecção destas obras, me deparei com uma enorme dificuldade: o uso da escultura em madeira era um suplício para mim. Foram meses tentando esculpir em madeira e dias com dores nas articulações. Impedida de produzir esculturas, voltei-me para o papel-machê, um material velho conhecido da produção de folhas de papel reciclado, papel reciclado com fibras naturais, vasos para arranjos de ikebana e outros usos que estudei e produzi ao longo de mais de 20 anos atuando como Educadora Ambiental.

O desafio agora era saber as medidas das obras que eu via nos catálogos, onde a maioria, sem descrição técnica sobre as medidas, se era uma máscara de uso ritualístico sobre um corpo humano ou para altares, sem ter várias informações importantes que somente o povo que as produziu saberia intuir. Uso o termo intuir, porque artistas africanos foram desprezados no contato com os invasores e suas peças expropriadas, sem as informações do local onde foram saqueadas, da comunidade  e do artista que produziu esta ou aquela obra. Há um componente étnico fundamental em cada uma das escolas de ofício em várias localidades africanas. Mas alguns artistas poderiam ter sido facilmente identificados, pois em alguns casos as peças foram compradas e quem comprou poderia ter anotado e divulgado o nome do artista.

Alguns museus virtuais (como: http://www.zyama.com), onde fica alojada uma relevante quantidade de obras artísticas africanas, estudei a iconografia e fiz uma organização minha, priorizando algumas peças com fotos  de seus detalhes. Fui abrindo arquivos e lá conheci mais de 4 mil peças. Algumas destas peças foram fotografadas em vários ângulos permitindo observar a estética completa de sua fabricação. O tamanho da peça vinha assim: “Tamanho: 13 ”x 7” x 7½ ”, uma medida em polegadas, o que exige os cálculos para cada peça.

Outra questão é que a branquitude desvincula a obra de seu local e sua função social. O rito ao qual pertencia cada uma destas obras é de importância vital para minha pesquisa, mas muitas dúvidas iam me assaltando no processo de confecção da obra:

- Tem sentido reproduzir uma peça ritualística e transformá-la em uma obra de arte?

- Eu sei que é importante para mim, mas será que é importante para outras pessoas negras também?

- Por quais razões materializar estas peças se transformou em uma questão de honra no meu trabalho?

Eu fui encontrando algumas respostas ao longo dos anos e estas respostas também me foram dadas por vozes em corpos de pessoas adultas e principalmente em corpos de crianças. O desejo na produção das peças de arte afro-brasileira que eu produzi era uma tradução (conhecida ou não) de várias pessoas na diáspora e também de pessoas africanas. Em 2010 no FREPOP  ocupei uma sala com minhas peças, ansiosas para conhecer o que diria Moussa Diop (educador do Senegal) sobre meu trabalho. Seu olhar treinado de quem já tinha visto muitas peças africanas foi generoso comigo. Mas só pude saber disto, anos mais tarde, quando descobri que para o Islã, a arte ritualística não deveria mais ser tão importante. Uma coisa é o Islã nos centros africanos maiores, outra a adoção  da religião se deu como resistência (povo letrado, com Mulás que poderiam ensinar a escrita) para sobreviver nos locais mais radicalmente tocados pela cultura machista ocidental. Então, descobri na audiência do cinema africano contemporâneo, este conflito entre a arte tradicional ritualística e arte africana diaspórica.

Daquele período em diante comecei a usar além do critério estético, também um recorte geracional, além de buscar a iconografia representativa da vida da mulher africana e sua posição na constituição identitária como mulher e negra. Assim, o desvelamento das peças ganhou o sentido interpretativo, seguindo o roteiro de importância para mim como artista negra na diáspora, agora já em condições de discutir quais peças escolher e quais critérios utilizar para esta escolha.

Quando fui selecionar, dentre as muitas peças que produzi (mais de 180) quais viriam compor este Ato da Exposição Virtual das peças afro-brasileiras,  quis contemplar peças, que possam também compor uma narrativa histórica da minha constituição como artística plástica, em constante mudança de materiais e técnicas de trabalho, que vão sendo incorporadas devido à vários motivos. Um muito importante é a criação de um modo de produção afrocentrado, com base na filosofia mulherista amefricana, que pretendo discutir nos capítulos da minha Tese, que foi sendo alterada com as falas das mulheres negras e suas famílias, fortemente impactadas neste período de sobrevivência dentro de uma Pandemia social, agravada pela persistência contaminante do Coronavírus.

Assim, escolhi 10 obras (alguns tópicos tem mais de uma peça, por se tratar de uma série)  para iniciar este Terceiro Ato da Arte Malunga, configurado numa retrospectiva histórica, com a atualização do meu trabalho como artista plástica, agora já com a contribuição das mulheres e crianças do Mocambo, de forma mais organizada, que é o coração da minha pesquisa de Doutorado.

São estas as obras que iniciam este 3° Ato:

1.     Velho Yorubá

2.     Mwana Pwo

3.     Teke (negociantes)

4.     Ekoi Ejagham

5.     Fang Picasso

6.     Velhos Ibejis

7.     Yemanjá Negra

8.     Um Anjo para Aleijadinho

9.     Rainha Tie e Arte Egípcia e

10.                     Ntesiematemasie – Eu vi e guardei: Símbolo adinkra da sabedoria, do conhecimento e da prudência.

 

Medidas das peças deste bloco de trabalho

Nome da obra

largura

altura

profundidade

Velho Yorubá

22 cm

27 cm

32 cm

Mwana Pwo

36 cm

46 cm

38 cm

Teke (negociantes)

1,10cm

100 cm

19 cm

Teke quadro 0,90 cm X0,60 cm

-

-

-

Ekoi Ejagham 1

25 cm

36 cm

30 cm

Ekoi 2 faces

27 cm

60 cm

25 cm

Fang Picasso 1

10 cm

48 cm

8 cm

Fang Tartou

12 cm

54 cm

9 cm

Velhos Ibejis

18 cm

25 cm

25 cm

Yemanjá Negra

19  cm

25 cm

25 cm

Um Anjo para Aleijadinho 1

13 cm

21 cm

13,5 cm

O Anjo Preto de Sinhá

21 cm

33 cm

20 cm

Anjinha revoltada

0,7 cm

9,5 cm

5 cm

Rainha Tie e Arte Egípcia e

42 cm diâmetro

-

 Ntesiematemasie – Eu vi e guardei: Símbolo adinkra da sabedoria, do conhecimento e da prudência

1,5 m X 1 m

 

 

1.     Velho Yorubá

 


                                        

Presente em um catálogo do Meu seu Afrobrasil que ganhei em 2006, esta imagem ficou me impressionando durante muito tempo: as  profundas escarificações na face, um  sinal de coragem e prova que é capaz de suportar a dor! O penteado ilustra a secularidade do uso de dreads nos cabelos, produzindo penteados compactos, usados tanto por mulheres como por homens.

Modelei esta peça  em papel-machê numa madrugada em que perdi o sono. A base produzida em jornais velhos e encapada com sacos de plásticos permitiu que eu pudesse modelar a peça quase de uma vez. Ao secar o papel-machê pode rachar, mas diferente da massa cerâmica de modelar, a massa de papel pode ser remendada quantas vezes forem necessárias.

Imitar o acabamento envelhecido e as cores originais foi também uma preocupação que tive, justamente porque estava colada ainda na materialização de uma arte ritualística, ainda que não pudesse ter acesso ao ritual.

 

Mas o que vem a ser uma Máscara Ritualística?

São as peças que só fazem sentido para os povos originários se forem utilizadas em um ritual. Tanto as manifestações da Religião Islâmica, como as correntes católicas e evangélicas adotaram a prática de demonizar os ritos originários. O que não conseguiram demonizar incluíram  em seus ritos: como a defumação, que em alguns casos acontece no momento do Ofertório. Na missa é mais um dos ritos. Benzer com água santificada tem o mesmo princípio que benzer para as benzedeiras e rezadeiras: um é admirado e o outro demonizado. Ou seja: o rito está para a religião colado com o racismo estrutural, é dependente dele para ser glorificado ou para ser apedrejado, destruído ou incorporando ao mercado de peças.

Como então produzir as peças com outras possibilidades?

 

 

 

2.     Mwana Pwo

 


 



                                                   

Muana Pwo original foi esculpida em madeira, por um mestre artesão nos anos 1930. Estas pessoas chamam a si mesmas como Kocokwe ou Tucokwe no plural. Usam mais de 30 nomes diferentes, porque vivem numa área ampla no leste de Angola, República Democrática do Congo e Zámbia.

A história destes grupos étnicos remonta ao século 15, quando uma rainha Lunda casou-se com um príncipe Luba. Luba Chibinda Ilunga. Um membro da aristocracia Lunda não aprovou o casamento e o casal saiu das terras de Angola fundando vários outros reinos. As vidas das mulheres é governada por Ukele e a dos homens por Mugonge, nomes de sociedades com regras específicas que determinam o comportamento de cada pessoa nesta sociedade.

Toda a organização social é fundada sobre bases matrilineares, com um grande número de estátuas femininas, quer sejam identificadas como a rainha-mãe ou a esposa do chefe.

Nos tempos antigos, estas estátuas podem ter desempenhado um importante papel nas crenças religiosas e práticas institucionais, mas aos poucos elas passaram a ser utilizadas para o entretenimento. Atores itinerantes vestindo estas máscaras viajam de aldeia em aldeia, vivendo de doações recebidas nas perfórmaces. A maioria das máscaras são esculpidas em madeira.

No passado, somente o chefe ou um de seus filhos podia usar a máscara e o tributo era ofertado em troca da proteção que a máscara fornecia. Uma máscara Chihongo traz prosperidade e a feminina Pwo a fertilidade: ela representa as mulheres jovens iniciadas e já prontas para a maternidade. A arte Chokwe influenciou vários outros povos como os Lundas, Mbundas, Luvale e Mbangani. Desta maneira, há certas similaridades em algumas peças, ficando muito difícil reconhecer a procedência, sem a informação da origem da peça.

A Muana Pwo é uma ancestral deste povo e possui rituais próprios.  Modelei a minha Pwo em papel machê, usei tecidos, bambu cortado e contas de madeira. Tingi com tinta a óleo e tintas acrílicas.


 

3.     Teke (negociantes)


 


A função social maior deste grupo étnico foi adotada como nome do grupo. Eles vivem mais densamente habitando ambas as Repúblicas do Congo e o Gabão.

Durante o século 15 foram integradas no reino de Tio, mas alcançou a independência no século 17. A unidade social básica é  família, sob a autoridade do Mfumu.  Em termos de vida espiritual, a Mpugu Mfumu, o chefe da vila era escolhido por ser um líder religioso,  sendo a pessoa mais importante nas tomadas de decisão para a comunidade. Ele mantinha a cesta contendo as estatuetas de magia e os ossos dos antepassados.  Os Teke muitas vezes escolhiam um ferreiro como chefe - uma pessoa importante na comunidade, cuja profissão era passada de pai para filho.

 O adivinho, tanto feiticeiro e curandeiro, também era poderoso, distribuindo benesses  efetivadas com as mussas: estatuetas de proteção pessoal, com as quais se poderia realizar adivinhações em casos de doença ou morte.

A economia dos Teke, na atualidade, baseia-se principalmente na agricultura de milho, milheto e tabaco, mas os Teke também são caçadores, pescadores e construtores qualificados.  Eles acreditam em um ser supremo, o criador do universo chamado Nzambi, cujos favores podem ser obtidos com a ajuda de espíritos tutelares.

Os artistas Teke  esculpiam figuras para colocar nelas um poder curador.Três elementos são característicos nestas esculturas: uma variedade de cocares, a presença de finas escarificações paralelas nas bochechas, e a adição de Bongo, o material de poder, seja em uma cavidade abdominal ou em um corpo envolvente tipo saco, de que a cabeça e os pés  se sobressaem. A escultura fica tomada em boa parte com saquinhos e elementos próximos ao que conhecemos como patuás.

 Cada figura tem a sua própria finalidade não relacionada diretamente à sua aparência. Por exemplo, quando uma figura é esculpida para uma criança recém-nascida, parte da placenta é colocada na cavidade do estômago da figura, enquanto o restante é enterrado dentro da cabana do pai (onde as estatuetas da família são mantidas).  A peça serve para proteger a criança até a puberdade.  Figuras de aparência idêntica servem também para o sucesso na caça, comércio e outras atividades, sendo que propósito de cada figura só é conhecido pelo proprietário.  Estas peças protegem e oferecem assistência espiritual aos Teke e, se uma figura fetiche demonstra o seu poder, através do sucesso de seu proprietário; este pode desligar Bonga, quebrá-lo em vários pedaços e com os fragmentos inseridos em outras figuras, o poder continua poderoso. 

O Bonga é composto de vários materiais, mas um dos principais ingredientes é argila esbranquiçada ou giz, que, para os Teke, representa os ossos de seus ancestrais, transmitindo, assim, poder protetor.  Muitas vezes é misturado com os recortes de unha ou o cabelo de uma pessoa venerada, com folhas de plantas específicas, várias partes de cobras ou leopardos, etc... Existem também as estátuas com dois rostos e pernas duplas; estátuas sem cavidade, chamada Nkiba: figuras com cavidades.

Há figuras Teke em forma de máscaras arredondadas ou mesmo em círculos perfeitos, decoradas com motivos abstratos geométricos, divididas por uma barra horizontal, coloridas com terra branca ou vermelha, pintada de preto, azul e tons de marrons.  Elas retratam um rosto humano interpretado abstratamente.  Ao mesmo tempo, o design é uma composição de símbolos.  Estas  máscaras Teke são usadas pelos membros da sociedade Kidumu quer durante os funerais de chefes, ou casamentos ou reuniões importantes.

 

Subverti o uso das máscaras abstratas Teke e pintei uma tela. Também produzi esta peça enorme, que certamente não pode ser usada no rosto.



 

 

4.     EKOI EJAGHAM

 

Obra original em acervo de museu

 Nigéria e Camarões

 Na região do Rio Cross (estado de Calabar) no sudeste da Nigéria, e mais em Camarões, várias etnias são encontradas e entre elas os Ejagham.  A mais velha sociedade secreta do Rio Cross pode ser a sociedade masculina Ngbe do povo Ejagham ou Ekoi.  Na sua língua Ngbe significa "leopardo." O culto do leopardo tinha um efeito unificador sobre as comunidades dispersas de Rio Cross.  Comércio, rituais e trocas sociais aconteceram por causa deste culto, assim, contornaram as desvantagens envolvidas com um regime não-centralizado e as instituições políticas que muitas vezes não se estendem para além da aldeia.

 Com exceção da limpeza das florestas, o trabalho agrícola dos Ejagham é tradicionalmente feito por mulheres.  Os homens eram livres para caçar e para as artes da guerra.  Significou também que os homens tinham tempo para o lazer e elaboração da arte.  Eles combinaram um amor pelo físico e a auto-realização física na caça, com um amor de realização artística.  Homens e mulheres teciam pano de ráfia em tear vertical; homens e mulheres dedicando tempo e carinho para a elaboração do penteado, pintura corporal, e vestimentas.

 O povos  Ekoi (Anyang, Boki, Ejagham, Keaka e Yako) são mais conhecidos por seus grandes penteados, a pele coberta de máscaras, que podem ter um, dois ou até três rostos, e seus cocares que representam uma cabeça ou uma figura inteira.  As cabeças e pele coberta de máscaras-capacete são únicas em África.  No começo, cobertas das peles dos inimigos mortos em combate (era uma horaria só para inimigos valorosos), mais tarde, peles de antílopes foram utilizadas.  A rede comercial elaborada ao longo do rio anteriormente envolvia a venda de direitos de Ngbe e outras associações, incluindo o direito de usar as suas máscaras diferentes.  O grupo de vendedores dos direitos realizava o baile de máscaras na aldeia do grupo comprador, em seguida, voltando para casa, deixando as suas máscaras e fantasias para trás.

O comércio fluvial, assim, ajudou a difundir eventos relacionados à arte e objetos de arte, entre diversas pessoas em uma área ampla, apesar de mudanças na forma e significado acontecendo fora dos locais onde máscaras e fantasias foram feitas.  Máscaras de sociedades secretas aparecem em performances de dançarinos realizado em funerais, iniciações de novos membros, eventos agrícolas e outros.

 Dois tipos de máscaras dominam: as máscaras-capacete e máscaras crista.  A máscara-capacete cobre toda a cabeça até chegar aos ombros.  Quando a máscara é feita de pele de animal fresca, é esticada e pregada sobre a madeira macia de que é esculpida.  Depois que a pele seca, era manchada com pigmentos feitos a partir de folhas e cascas.  Algumas máscaras não cobrem a cabeça, mas usadas em cima dela. 

Eles são confeccionadas com cestaria como tampa, que é tecida na cabeça do usuário.  Os capacetes e as máscaras, muitas vezes tem dentes de metal, os olhos embutidos e, frequentemente, capim para representar o cabelo, o que, em alternativa, pode ser esculpida em rolos elaborados. Penas, pelos e outros objetos teriam ornamentado a máscara nas danças.  Cabelos entram no penteado.  Presume-se que todas as máscaras representam antepassados.

 Além das máscaras que representam cabeças humanas, há também aquelas que representam os crânios dos animais.  Todas estas máscaras de animais e máscaras grotescas são vistas como ferozes e assustadoras.  A pele que cobre uma máscara serviu como um agente mágico para invocar espíritos ancestrais, diminuindo, assim, a barreira entre vivos e mortos participantes em rituais comunitários.  

 Na área Ejagham do norte, ao redor dos Ikom, são encontradas grandes pedras, akwanshi, de um a seis metros de altura, entalhadas em baixo relevo, representando figuras humanas.  Provavelmente são anteriores ao século 16. O processo escravizatório e as invasões nos territórios locais destruiu quase toda a estrutura destes povos. O que ficou foi transformada em mercadorias. Como estas máscaras de controle social desperta, até a atualidade, uma “confirmação” da nossa “selvageria” estas máscaras e suas imagens correram o mundo.

No trabalho de formação com crianças, jovens, professoras e toda equipe escolar materializar estas peças é uma incrível provocação. No entanto, vários cuidados são necessários com uma provocação assim. Fui me preparando ao longo de muitos anos para criar estas situações de conflito com minha arte. Até a atualidade ninguém que provoco com uma máscara desta fica na moita.

Minha Ekoi recebeu dentes humanos e dentes caninos. Os humanos foram doados por minha destista. São dentes do siso que infeccionaram e tiveram que ser extraídos, ou pessoas que tiveram que fazer a extração por sérios problemas nas gengivas. Usei também dentes de uma cachorra que tivemos. Em um período de duras provas materiais não pude  levar minha Pérola na clínica veterinária e ela morreu sem poder parir seis lindos filhotes. Esperei muito para abrir a barriga dela e os filhotinhos morreram com falta de ar. Enterrei e marquei o local. Um ano depois tirei os dentes e ossos dela para utilizar nas minhas obras de arte.

Usei também cabelo meu, então é uma obra que deve ir para o túmulo comigo. Tem nela parte do meu axé. Tem também parte de minha Pérola que vou reencontrar no plano espiritual.

 Minhas Ekois


                   Peça produzida em papel-machê, ossos, dentes e cabelos naturais

 


                                                  Minha Ekoi com duas faces em papel-machê



                                                   Minha Ekoi com expressão de Exu (face 2 da peça)

EKOI em acervo de museu


                                                                         Povo Ekoi em 1918



5.     FANG PICASSO

Outros nomes deste grupo: FAN, MPANGWE, PAHOUIN, PAHOUINS, PAHUINS, PAMUE, PANGWE.



         Foto da Revista Brasileiros - máscara Fang no Museu e Retrato de Russolo

 O povo Fang são migrantes relativamente recentes na Guiné Equatorial, e muitos deles se mudaram do centro de Camarões no século XIX. Os primeiros etnólogos conjecturaram que fossem povos nilóticos da área do alto do rio Nilo, mas uma combinação de evidências os colocaram como sendo de origem bantu, que começaram a se mover por volta do século sétimo ou oitavo, possivelmente por causa das invasões do norte e das guerras de África Ocidental e África Sulsaariana.

 

O povo Fang foi vítima do grande comércio de escravos transatlântico e trans-saariano entre os séculos 16 e 19. Eles foram estereotipados como canibais por comerciantes de escravos e missionários, em parte porque crânios e ossos humanos foram encontrados abertos ou em caixas de madeira perto de suas aldeias, uma alegação usada para justificar a violência contra eles e sua escravidão.

As pessoas  Fang chegam a 800.000 e constituem um vasto mosaico de comunidades de aldeias, com sede em uma grande zona equatorial do Atlântico Sul, que compreende os Camarões, Guiné Equatorial Continental e quase todo o norte do Gabão, na margem direita do rio Ogowe.

 Historicamente, os Fang foram itinerantes, e é relativamente recente ea instalação nessa área ampla.  A existência migratória dos Fang, dificultava a criação de santuários ancestrais em cemitérios.  Em vez disso, os restos dos mortos importantes, na forma do crânio e outros ossos, eram transportados de um lugar para outro em uma caixa de casca cilíndrica, o que levou os invasores a suporem que eram antropófagos, alimentando sua gana racista e genocida.  

A região do grande floresta tropical, onde permanecem os Fang, é um planalto de altitude média, cortada por águas abundantes, com inúmeras cachoeiras e corredeiras de navegação na maioria das vezes impossível, e com um clima tipicamente equatorial.  Fang são principalmente caçadores, mas também agricultores.  Sua estrutura social é baseada em um clã, um grupo de indivíduos com um ancestral comum, e com base matrilinear. .

 O conjunto de povos Fang praticam um culto dedicado a linhagem ancestral, o Bieri, cujo objetivo é proteger tanto de mortos, como para recrutar a sua ajuda em questões de vida diária.  Este culto familiar não monopoliza o universo religioso Fang, pois ele convive com outras crenças e rituais de caráter mais coletivo.

 Um dos rituais  os mascarados, vestidos com trajes de ráfia e com a presença de ajudantes, se materializariam na aldeia de noite, iluminado por tochas cintilantes.  As máscaras, como aquelas usadas pelos trovadores itinerantes e para caçar e punir os feiticeiros malignos, são pintadas de branco com traços faciais em preto. As mais típicas são grandes, alongadas, cobertas com caulim e com um cara que era geralmente em forma de coração com um longo e fino nariz.  Aparentemente, ela tem sido associada com os mortos e antepassados, uma vez que é branca (cor da morte) sua cor.  A sociedade de dança Ngontang também usado máscaras brancas, às vezes sob a forma de capacete com 4 lados, com abaulamento da testa e as sobrancelhas em forma de coração.  A máscara Ngontang simboliza uma "menina branca".  A ela ou ao antílope vermelho foi associada uma iniciação que dura vários meses, também com as máscaras com longos chifres. As peças nativas dos Fang despertaram muito interesse e os traços destas máscaras podem ser encontrados em vários obras de arte do período fauvista, cubista e modernista.

Luigi Russolo fez um auto retrato à partir de uma máscara Fang presente no Museu do Home em Paris. Foram fotos destas máscaras que me remeteram às obras de Picasso. Olhando para as obras de Picasso verifiquei como ele se apropriou da iconografia africana, sem creditar seu uso, como fez toda as sociedades eurocêntricas e norte-americana.

Foi assim, que buscando fazer uma pesquisa afrocentrada fui elaborando um Alfacromogeométrico africano e ameríndio. Estudar as cores, formatos de vários grupos étnicos e anotar seus traços, para só então recombinar em formatos e cores me fez constituir um processo que considera e respeita a ancestralidade destes povos na elaboração de uma arte contemporânea respeitosa.

 

MInha Fang de 2008 talvez


Minha Fang de 2020.

6.     Velhos Ibejis

Ibeji é divindade gêmea da vida, protetor dos gêmeos na mitologia iorubá, identificado no jogo do merindilogum pelos odus (estudo cuidadoso do destino) Ijiocô e Icá. Dá-se o nome de Taiwo ao primeiro gêmeo e o de Kehinde ao último. Os iorubás acreditam que era Kehinde quem mandava Taiwo supervisionar o mundo, donde a hipótese de ser aquele o irmão mais velho.

Cada gêmeo é representado por uma imagem. Os iorubás colocam alimentos sobre suas imagens para invocar a benevolência de Ìbejì. Os pais de gêmeos costumam fazer sacrifícios a cada oito dias em sua honra. Como foram ligados ainda na barriga da mãe, são mais que irmãos. Assim, caso um dos gêmeos morra a estatueta sua correspondente é cuidada para que continue com seu irmão ou irmã que ficou neste plano da vida.

Aqui no Brasil, os Ibejis foram transmutados em Cosme e Damião, ganhando fama as festas realizadas em Candomblés e Umbandas. Era das poucas festas toleradas na comunidade católica onde nasci. A única que minha mãe permitia que eu fosse. Até havia o hábito de recolher doações para fazer a festa bonita e cheia de boas comidas, doces, bolos e muitos outros quitutes.

Ao estudar as sociedades nagôs e a imagética iorubana, descobri uma enorme riqueza de formas e cores, tanto originária, como novas iconografias desenvolvidas aqui no Brasil, à partir da interpretação de itans (cadernos de anotação dos Candomblés) como das muitas casas que foram produzindo suas imagens, de acordo com os artistas locais.

Também é muito rica os artistas contemporâneos de Benin, Nigéria, Burkina Faso, Níger... a arte africana vai da ancestralidade e a vanguarda sem trauma! Ao perceber isto no meu desejo como artista foi um deleite. Eu também poderia fazer peças de qualquer grupo étnico, com qualquer uma das técnicas que estes artistas utilizam ou utilizavam!

Foi então que por uns 3 anos eu quis fazer dois gêmeos marcados pelas diferenças em seus corpos. E não fazê-los crianças, mas velhinhos! A concepção dos Velhos Yorubás levou tempo! Estudei penteados antigos, esculturas produzidas com o cabelo pixaim e fui modelando minha obra. Então quis fazer desta peça um local de oferendas com flores e folhagens, me lembrando da orixá Ossaim e também de Onilé, quando fosse montar um cenário cuidadoso.

 


Velhos Ibejis  frente


Velhos Ibejis (trás com vaso)



7.     Yemanjá Negra

Primeiro veio a revolta: como é que a branquitude teve coragem de manter Yemanjá numa imagem de branca? E a revolta só foi aumentando quando encontrei esta imagem em casas de pessoas negras militantes, que covardemente não conseguiram olhar no espelho e estudar. Pois se todos os orixás são conhecidos em suas imagens nagôs, por quais razões Yemanjá continuava só branca?

Então fui descobrindo que o racismo é perverso quando decide que preto não pode ter figura importante. Nem mesmo a orixá poderia! Como então vai sair em 02 de fevereiro uma carreata por Salvador inteira uma imagem de uma Yemanjá Negra? E esta ficou sendo um desafio que vou elaborando. Além das muitas apresentações de Yemanjá negra já construindo por muitas pintoras e pintores, aqui o desafio para as escultoras, para as designs e todas as mulheres pretas que mantiveram a vergonha na cara, com plena consciência de suas negritudes!

Bora ocupar esta imagem de uma Yemanjá negra! De várias Yemanjas negras. Kayala negra. Sobá Negra. Oguntê Negra!


                                                 Quadro: não sei a autoria

Yemanjá de Abayomi
Obra minha composta com Kayalas

Minha Yemanjá em cerâmica









 Yorubás:  o povo que tanto nos influencia até a atualidade

O povo iorubá, totalizando mais de 12 milhões, são a maior nação da África, com uma produção de arte da tradição.  A maioria deles vive no sudoeste da Nigéria, com comunidades mais a oeste, na República do Benin e no Togo.  Elas estão divididas em cerca de vinte subgrupos separados, os reinos que tradicionalmente eram autônomos.  Uma escavação realizada em Ifé, recuperou figuras em bronze confeccionadas em tamanho natural. As cabeças de terracota recuperadas estavam repletas de jóias, oferecendo uma noção da realeza na época passada. As descobertas de tantas riquezas artísticas têm assustado o mundo racista, superando a concepção equivocada, difundida mundialmente sobre as culturas africanas.  O cabedal cultural e artístico dos mestres  de Ifé do Período Clássico (1050-1500 a. C) se encontram no centro cultural mais antiga de NOK para o Nordeste, embora a natureza precisa desta ligação permaneça em histórias orais por vezes conflitantes. Na atualidade, dois terços dos iorubas são agricultores. Mesmo quando vivam na cidade, eles mantêm uma cabana no campo onde plantam milho, feijão, mandioca, inhame, amendoim, café e banana. São os próprios agricultores, juntamente com comerciantes e artesãos ferreiros, trabalhadores de cobre, bordadeiras e escultores de madeira que controlam o mercado local. O veio do comércio é mantido de uma geração para outra, como uma herança da tradição familiar.

No caminho do Atlântico o sequestro de povos iorubanos perdurou até depois de encerrado oficialmente a escravização, o que manteve uma forte herança cultural destes povos no Brasil e outras diásporas negras, a ponto de manter-se aqui nestas terras Candomblés muito similares aos antigos das terras do outro lado do Atlântico. A assimilação cultural e adoção de práticas ameríndias, ao contrário de enfraquecer, fortaleceu ainda mais as nações nagôs.  Um resgaste histórico da negritude de Yemanjá é um projeto também de respeito com a negritude amerafricana.

 

 

8.     Um Anjo para Aleijadinho



Música: Batuque de Pirapora” - Composição: Geraldo Filme.

“Eu era menino

Mamãe disse: vamo embora

Você vai ser batizado

No samba de Pirapora

Mamãe fez uma promessa

Para me vestir de anjo

Me vestiu de azul-celeste

Na cabeça um arranjo

Ouviu-se a voz do festeiro

No meio da multidão

Menino preto não sai

Aqui nessa procissão

Mamãe, mulher decidida

Ao santo pediu perdão

Jogou minha asa fora

Me levou pro barracão

Lá no barraco

Tudo era alegria

Nego batia na zabumba

E o boi gemia

Iniciado o neguinho

Num batuque de terreiro

Samba de Piracicaba

Tietê e campineiro

Os bambas da Paulicéia

Não consigo esquecer

Fredericão na zabumba

Fazia a terra tremer

Cresci na roda de bamba

No meio da alegria

Eunice puxava o ponto

Dona Olímpia respondia

Sinhá caía na roda

Gastando a sua sandália

E a poeira levantava

Com o vento das sete saias

Lá no terreiro

Tudo era alegria

Nego batia na zabumba

E o boi gemia

Lá no terreiro

Tudo era alegria

Nego batia na zabumba

E o boi gemia!”

 

E a história conta, pela voz de nossos Mais Velhos este impedimento de menino preto vestir-se de anjo ser proibido na Igreja Católica e são muitas histórias.

Narram também estas histórias, a tristeza de Aleijadinho de ter herdado o dom de esculpir de seu pai e tio brancos (ele era filho de uma escravizada liberta) e não poder trabalhar no barracão do pai. Eu mesma ouvi de um famoso político negro, com os olhos cheios de mágoa ainda agora, o fato de não ter podido usar a roupa de anjo “tão linda” produzida por sua família, com os maiores sacrifícios. De todas as falas, eu fui também me recordando das procissões que acompanhei pela mão de minha mãe e das meninas, sempre de olhos claros, vestidas de anjo. Nunca nem sonhei que pudesse eu também vestir-me de anjo. No entanto, acompanhava os preparativos para as procissões observando as hierarquias e por vezes as conversas cheias de orgulho das meninas e meninos que podiam vestir-se de anjos e ser coroinhas (aí então menina não podia mesmo).

A cozinha cheia de mulheres pretas, a faxina da igreja feita por mulheres. O arremedo moderno da Senzala e da Casa Grande!

Decidi ainda naquela época que uma igreja assim não me servia. Fui até ter tamanho suficiente para dizer não! Fiz a tal da comunhão cheia de raiva, com todas as críticas da catequista que não entendia minha revolta! E também não quis entender, ou não podia, vivendo sob o jugo da família e da igreja.

Daí na crisma eu já era grandinha e decidi gritar “não quero, não vou e pode me matar que não faço!” Minha mãe em total desespero, sem saber como justificar para o padre da paróquia minha ausência daquele tipo de igreja. Eu ficava na praça, observando meus colegas de brincadeira pedindo esmola, fazendo de conta que tomava conta de carro dos remediados, que faziam de conta que eram ricos! Isto eu era proibida de fazer. Jamais minha mãe permitiu que nós pedíssemos! Isto eu acatava, porque já pensava ser o cúmulo da humilhação!

Já crescida materializei o desejo de muita gente nestas peças que são para todas as crianças negras e todas as pessoas adultas que não puderam vestir-se de anjo. Chamei esta série de “Um anjo para Aleijadinho”, por ser ele o preto mais famoso impedido de produzir anjos negros pintados de preto. Seus anjos de traços negroides são uma denúncia do racismo estrutural propagado neste país e documentado na arte em Minas Gerais e em outros locais do brasil.


Um anjo para sinhá é a materialização presente na letra de Chico Buarque de 2015. Gosto da interpretação do grupo + 55. Esta música entrou no repertório da Banda Maatumbá  e assim a história se fez presente com a letra da música.



 


A “Anjinha negra revoltada” modelei em argila e queimei no fogo de lenha para lembrar todas as meninas  e meninos que sofreram violência sexual de seus pais e padrastos brancos. Fato que este país morre de medo de encarar; toda pele mestiça tem várias histórias de estupro na sua composição!

 

Minha anjinha em cerâmica

 

9.     Rainha Tye e Arte Egípcia


Peça encontrada nas escavações no Egito no Museu do Cairo

Tí, Tiyi, Tiye, Tye ou Teye foi uma rainha do Antigo Egito, Grande Esposa Real do faraó Amenófis III da XVIII dinastia. Foi também mãe de Amenófis IV (ou Aquenáton: o Rei  que introduziu o monoteísmo no Egito antigo: Aton) e de mais seis príncipes e princesas conhecidas. Contam as histórias que Tye  foi uma poderosa rainha consorte do Egito,  mãe do polêmico faraó Akhenaton e avó do famoso Tutancâmon. Fazendo parte do último mandato poderoso do Reino Médio, ela viu o início da crise do Império que resultou em sucessivas quedas de governantes. Neste período  começou a desintegração dos Reinos, tempos depois de sua morte. Tí era filha do rei mitani Duiusrata, nascida na Síria e ligada a um panteão distinto ao do Egito. A rainha se tornou esposa do faraó egípcio aos 10 anos, e, desde então, manteve-se ao lado do marido até seus dias finais. Em um bom relacionamento, Tí foi comumente representada nos monumentos régios do Egito no governo de Amenhotep III, sendo uma das figuras mais reproduzidas na época, sempre em pé de igualdade com o marido. Isso pode indicar a popularidade da rainha. Adoradores que acreditavam que o sol era o representante divino que iluminava a terra todos os dias, como um deus.

Indica também porque Akhenaton pendeu para o monoteísmo, fato contrário às tradições egípcias. Mudando muitas coisas no reino ele alterou os lugares de culto. A cabeça de Tye traz vários símbolos egípcios e eu quis fazer uma serpente sobre sua cabeça como representante do poder feminino. A cobra, como símbolo da sabedoria e não na sua transmutação em símbolo negativo.

No dia 21 de janeiro de 2006 uma equipe arqueológica da Universidade Johns Hopkins descobriu em Luxor, no Egito, uma estátua de granito que se pensava ser uma representação da rainha Tye. Porém no dia 23 de março de 2008 uma nova notícia percorreu o mundo: "Descoberta a estátua da rainha Ti muito bem preservada e com provas de ser sua representante iconográfica.

 

Minha Tye em cerâmica queimada - pintura a óleo

 

10.                    Ntsiematemasie – Eu vi e guardei: Símbolo adinkra da sabedoria, do conhecimento e da prudência.

 


fotos: VulKânica Pokaropa

Obra inspirada na produção de Artur Bispo do Rosário com um toque de El Anatsui

Esta obra foi uma das primeiras e ser elaborada após o 2° ato da Exposição Arte Malunga. Então quis incluí-la neste escrito por contribuir no meu percurso como artista plástica.

 É uma obra que foi finalizada em uma viagem para Garça em fevereiro de 2021. Este fato fez com que eu só pudesse utilizar na sua elaboração elementos que eu tive a minha disposição. O núcleo que nomeia a obra foi feito há mais de 3 anos. Era para ser uma guirlanda de Natal. A estrutura de roupa, como os Mantos de Bispo do Rosário foi uma coincidência. Eu levei de Presidente Prudente um metro e meio de tela de metal e quando fui montando a obra, percebi que deixá-la sem uma moldura daria esta flexibilidade à obra, permitindo que ela fosse adequada ao corpo humano.

A obra foi produzida com mais de 250 bonecas Abayomis, as trouxinhas coloridas e pedaços de latinhas de alumínio.

As latinhas de alumínio são a base do trabalho de El Antsui, que nasceu em Gana (1944) e atualmente vive e trabalha entre Gana e Nigéria. Em 2015, ele foi premiado com o Leão de Ouro pela Lifetime Achievement, na Bienal de Veneza . A exposição individual de El Anatsui “Gravidade e Graça: Obras Monumentais de El Anatsui”, foi organizada pelo Akron Art Museum, em Akron, Ohio (2012),  seguindo para o Brooklyn Museum, Nova York e o Des Moines Art Center, Iowa (2013); depois para o Museu de Arte Bass em Miami, Flórida (2014); em seguida para o Museu de Arte Contemporânea em San Diego, Califórnia (2015).

Neste mesmo ano o Museu Afrobrasil abriu a Exposição “ Africa Africans” com 100 obras, de mais de 20 artistas, em diversos suportes e linguagens, além de outras obras de arte africana, pertencentes ao acervo do museu e à coleção particular de Emanoel Araujo, diretor curatorial do Museu. Algumas obras de El Anatsui permaneceram no acervo do Museu e então pude ver de perto algumas monumentais produções do mestre.

 

 Referências Bibliográficas

CASSON, Lionel. O antigo Egito. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, (?)

CENTRO DE MUNICIPAL DE ARTES HÉLIO OITICICA/MUSEU AFROBRASIL. África ancestral e Contemporânea: as artes do Benin. Rio de Janeiro, 2011. (Catálogo da Exposição).

DILL, Luís; CAMANHO, Alexandre. Ouvindo Pedras: diário de Aleijadinho. São Paulo: Escala Educacional, 2008.

GARBINI, Giovanni et al. Mundo antigo. Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações. ?: 1979.

 LOPES, Nei. Bantos, malês e identidade negra. São Paulo: Autêntica, 2006.

LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro, 2004.

 MUSEU AFROBRASIL. http://www.museuafrobrasil.org.br/programacao-cultural/exposicoes/temporarias/detalhe?title=%22Africa+Africans%22+

MUSEU AFROBRASIL. Da cartografia do poder ao itinerário do saber. São Paulo, 2014. (Catálogo da Exposição)

MUSEU AFROBRASIL. África em Artes. http://www.museuafrobrasil.org.br/docs/default-source/publica%C3%A7%C3%B5es/africa_em_artes.pdf, acesso em 06/04/2021.

NASCIMENTO, Elisa Larkin; GÁ, Carlos. Adinkra: savedoria em símbolos africanos. Rio de Janeiro: IPEAFRO, 2009.

fotografia do povo Ejagham na Nigéria

https://www.facebook.com/BLOCOAFROMAGIANEGRA/

https://www.culturagenial.com/mascaras-africanas/, acesso em 06/04/2021.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Fangues, acesso em 06/04/2021.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Luigi_Russolo, acesso em 06/04/2021.

https://www.facebook.com/IleAseIyamiOmiTutu/, acesso em 06/04/2021 (imagem da Yemanjá Negra)

https://www.letras.mus.br/geraldo-filme/761011/ (Batuque de Pirapora)