sábado, 28 de abril de 2018

Sacolas Culturais Afro-Brasileiras


SACOLAS CULTURAIS AFROBRASILEIRAS: UM CENTRO DE LEITURA DENTRO DE CASA - Ivonete Aparecida Alves[1]

Este é um trabalho que iniciamos em 2009, com sacolas culturais, que após circularem em Cambuci, bairro de Pres. Prudente/SP, agora também funciona em outros locais do município (Escola Municipal, COOPERLIX, órgão de serviços; etc); em Paracatu/MG e Almeirim/PA, no primeiro semestre de 2011 com financiamento da FUNARTE – Fundação Nacional das Artes, do Ministério da Cultura.
O  objetivo das sacolas é compartilhar conhecimentos sobre leitura, literatura e peças étnicas que valorizem a cultura afrobrasileira, brasileira e africana, desconstruindo preconceitos e processos discriminatórios; amparando uma   práxis, onde está inclusa a estética dos povos da diáspora africana e suas reelaborações no contato intercultural: uma outra leitura do mundo, que passa também pela leitura da palavra e avança na construção de outras estéticas.
A leitura, a arte, e o artesanato fazem parte de nosso cotidiano porém, nem sempre é fácil identificar a origem histórica desses traços que permeiam nossa cultura. Esta é uma leitura de negação, que ao ser desvelada, diante da história das peças artísticas vivenciadas, há a emergência do Real e descoberta das nossas manifestações culturais. Ainda que existam manifestações culturais empapadas das mais diferentes etnias que compuseram a sociedade brasileira, há indícios de uma riqueza enorme das culturas africanas e indígenas que aqui estão, realocadas aos poucos e eficientemente com as sacolas culturais, pois com elas vão as exposições de arte africana e diaspórica, música, teatro, rodas de conversa, artesanato étnico e revistas diferenciadas.
Palavras-chaves: Cultura afrobrasileira, literatura afrobrasileira, arte e negritude
Key words: Afro-brasilian culture, afro-brasilian literature,  art and negritude






ABSTRATCT

AFRO-BBRAZILIAN CULTURAL BAGS: A READING CENTER AT HOME. - Ivonete Aparecida Alves

RESUMO/ ABSTRACT
This is a project we started in 2009, in which cultural bags go around Cambuci, a district of Presidente Prudente/SP. Nowadays the project is in other districts too (Municipal School, COOPERLIX, service departments, etc.); in Paracatu/MG and  Almeirim/PA. In the first semester of 2011 it was financed by FUNARTE – Arts National Foundation, of Cultural Department.
The aim of such bags is to share knowledge about reading, literature and ethnical objects that value Afro-Brazilian, Brazilian and African culture, deconstructing prejudice and discriminative processes; supporting the praxis, where it is included the aesthetic of African Diaspora and their re-elaborations in intercultural contact: another view of the world, which goes through word reading and goes ahead to other aesthetics construction.    
Reading, art, handcraft are part of our daily life, but sometimes it is not easy to identify the historical origin of such traits that permeate our culture. This is a denying reading, when it is unveiled, through the experience with the history of artistic objects there is a need for Real and our cultural manifestation discovery. Even there are cultural manifestation dip in different ethnicity that compose Brazilian society, there are evidences of a great abundance of African and Indian cultures here, slowly and efficiently re-located through cultural bags, once they carry African art exhibition and Diasporic, music, theater, talking groups, ethnic handcrafts and different magazines.   
  
Key words: Afro-Brazilian culture, Afro-Brazilian literature, art and negritude




Nossa história
Depois de muito dialogar com várias pessoas que já atuam em projetos culturais e participar do 17º. COLE – Congresso de Leitura do Brasil, na UNICAMP, em julho de 2009, assisti à comunicação das professoras da Educação Infantil de Campinas, Sidinéia Ferreira Lopes e Cassia Arlete Tossini da Costa, na sessão 4 do Tema: Políticas Públicas em Leitura. As professoras narraram sobre 2 sacolas de leitura que circulavam entre as famílias das crianças de suas turmas da Educação Infantil, onde elas também haviam detectado as poucas experiências leitoras que realizavam em casa, além da qualidade e variedade destas leituras. As professoras decidiram enviar contos em trechos para as famílias das crianças até chegarem a enviar a sacola com livros e revistas. O projeto deu tão certo que muitos familiares começaram a pedir livros extras para continuarem a ler.
Também buscávamos uma maneira de ampliar o universo leitor das pessoas do bairro onde atuamos e cada idéia necessitava do trabalho de pessoas que ainda não tínhamos formado. (Temos um grupo que coopera com a formação de participantes para a Economia Solidária e auto-gestão)
Nosso coletivo, Nzinga AfroBrasil, Arte, Educação, Cultura já atuava com as crianças desde o início de 2009, mas a participação dos familiares era ínfima, inclusive na hora de compartilhar conhecimento sobre nosso trabalho e peças que as crianças elaboravam.
Decidi então, fazer uma provocação, escolhendo autores e autoras que nos pereciam muito diferentes daqueles que compõem o universo das pessoas das classes mais excluídas de nosso município e compor as 10 primeiras sacolas culturais que circularam em 2009 e 2010 no bairro, e no início do ano letivo em 2010 circularam na Escola Municipal Profª “Vilma Alvarez Gonçalvez”, a  mais próxima do Nzinga, também em Cambuci, entre as professoras da escola. Em 2011 essas primeiras sacolas ficaram como referenciais para divulgação do Projeto e então elaboramos 10 sacolas com conteúdos novos para implementarem o trabalho no Vilma; 10 para circularem na COOPERLIX – Cooperativa de Reciclagem do Lixo de Pres. Prudente; 10 para Paracatu/MG e 10 para Almeirim/PA (onde também circulam 5 sacolas de literatura), compondo 03 Territórios da Cidadania, como previa o Edital da Bolsa de Literatura da FUNARTE – MinC, com o financiamento desse órgão.

Cultura e leitura de mundo para diminuir as desigualdades

O Programa Territórios da Cidadania foi lançado em 2008, com o objetivo de diminuir a desigualdade no meio rural, construindo uma política de desenvolvimento sustentável conjunta: governos municipais, estaduais e a esfera federal.
Em 2009, o número de Territórios atendidos aumentou de 60 para 120, em todo o Brasil. O número de Ministérios envolvidos também subiu de 19 para 22, agora atingindo também a população urbana. 
Este bolsa FUNARTE, com a qual fui contemplada, objetivou fomentar ações de leitura e arte em 3 Territórios da cidadania: Presidente Prudente (Pontal do Paranapanema); Paracatu/MG, (Noroeste de Minas); e Almeirim/Pa, no (Baixo Amazonas).
O coletivo Nzinga Afrobrasil, Arte, Educação, Cultura nasceu dentro do Território do Pontal do Paranapanema, inicialmente com a vivência na confecção de bonecas e máscaras étnicas, depois com ação de fomento à leitura, iniciando em 2011  com as sessões de cinema regular, todos os sábados 19h30min, na sede do coletivo.
Pesquiso sobre a cultura africana desde 1998, mas foi em 2004 que comecei a confeccionar bonecas inspiradas em originais africanas. Uso garrafas pet, tecidos, contas, sobras de colares e os mais diferentes materiais que são despojados por essa sociedade de consumo. A transformação de despojos em arte é minha maneira de interferir no mundo, parindo outras peças e colaborando na sensibilização das pessoas.

A composição das sacolas culturais e as oficinas de leitura
São sacolas costumizadas contendo: 2 livros de literatura, 1 CD, 1 DVD, 1 Revista Raça Brasil, 1 revista de circulação nacional diferenciada (Caros Amigos, Fórum, CULT, Revista da Fundação Cultural Palmares, sempre com títulos ou números diferentes, etc...), uma peça étnica africana, afrobrasileira ou brasileira; e 1 caderno para anotações.  As sacolas circulam em grupos de 10, 5 ou 4 pessoas. Para divulgação usualmente deixamos 2 sacolas para serem compartilhadas com amigos, conhecidos ou no próprio ambiente de trabalho. Inicia-se com a proposta de adesão espontânea para participar do projeto, e isto firma um compromisso para participar de uma Oficina de Leitura, onde compartilhamos e apreciamos o conteúdo de cada sacola, podendo começar com a Exposição. É nesse momento que fazemos a tabela de circulação das sacolas, decidimos a periodicidade da troca das sacolas e quais outros grupos poderão ter acesso ao material. Em Paracatu/MG, o grupo decidiu que 4 sacolas ficariam no Quilombo S. Domingos (zona rural do município) e 6 sacolas ficariam com as pessoas da cidade, sob a coordenação da Secretaria Municipal de Cultura.
Em Almeirim- Pará, como sugestão do diretor de Educação Municipal, Aldenis Rodrigues, propusemos como espaço-piloto a Escola Municipal Osvaldina Pinto da Rocha (mais conhecida como Jardim da Infância). Por solicitação da direção das escolas onde existe EJA – Educação de Jovens e Adultos, montamos 5 sacolas, só com literatura para circular entre estudantes da EJA ciclo 3 e 4 (correspondente à 5ª e 6ª séries).
As professoras da Escola Jardim de Infância também firmaram compromisso de se encontrarem uma vez por semana para discutir as peças étnicas e iniciar oficinas de confecção de material pedagógico inspirado no conteúdo das sacolas culturais, além de começar sessões de cinema na escola, compartilhando atividades entre as séries.
Lemos alguns trechos de algumas estórias, apreciamos as peças étnicas, com a leitura de algumas fichas (que acompanham cada peça étnica).
                    
Bonequinhas que compõem as sacolas culturais                            Peças de artesanato étnico paraense; e da etnia Kaipó-Asurini
               
.
As sacolas culturais com seu conteúdo variado são uma síntese de vários trabalhos de pesquisa, cursos de arte e artesanato, exposições, rodas de conversa e demandas das crianças do coletivo Nzinga Afrobrasil, do município e da região, além de locais distantes com os quais mantivemos contato participando de feiras, congressos, seminários e fóruns no Brasil.

Leitura do mundo, leitura da palavra
A nossa participação em encontros internacionais tem possibilitado o intercâmbio de informações e vivências também com pessoas das nações africanas, com o que as sacolas culturais podem ser enriquecidas e/ou valorizadas.
Em julho de 2011 participando do FREPOP – Fórum Regional de Educação Popular em Lins/SP, reafirmamos o compromisso de valorizar nossas experiências culturais, trazendo para Presidente Prudente o Profº Liam Kane da Universidade de Glasgow – Reino Unido (Escócia). O professor fez uma roda com as crianças do coletivo e pudemos compartilhar vários saberes, facilitando o intercâmbio que já estamos tentando firmar tem 4 anos. O objetivo é trazer para morar em Presidente Prudente estudantes ou militantes da Escócia e assim vivenciar o inglês e o português na comunidade, iniciando um processo de ensino-aprendizagem diferenciado para o grupo de crianças e jovens da comunidade. Sem uma intermediação é praticamente impossível para crianças e jovens desses Territórios viajarem para fora do país.

 As sacolas culturais na COOPERLIX
“Nós somos os meninos carrapichos,
Tiramos nossa vida do lixo
É do lixo que aprendi,
Eu aprendi a trabalhar
Então joga tudo no lixo
Que nós vamos lá buscar...” Efigênia dos Santos Roldão
 (moradora de rua em Porto Alegre)
O chorume é o caldo do capitalismo e o que fica para a população pobre, a taça de champanhe que o povo da periferia é obrigado a beber, cheirar, comer ou retirar dele o necessário para alimentar uma cadeia enorme de exploração. Mas é também no trabalho de coleta, seleção, agregando valor que o lixo para a ser produto. Com todas as críticas não ingênuas que a gente pode fazer.
Ao iniciarmos o convite para que os recicladores/as da COOPERLIX pudessem participar das Sacolas Culturais já sabíamos que o desafio seria maior e diferente de outros locais onde as Sacolas já circularam. A autogestão ainda não foi conquistada e as trocas das sacolas só acontecem se a gente for lá realizá-las. Já na elaboração do invólucro  procuramos fazer uma pesquisa para montar sacolas que tivessem vindo de um trabalho coletivo. Assim compramos tapetinhos confeccionados em Ibitinga/SP, com as sobras de colchas que fazem do município paulista a capital de peças bordadas para enxovais. Então passamos a pensar na maneira de montá-las e seus conteúdos. As peças étnicas, livros de literatura, CDs e DVDs também foram escolhidos com um propósito de pensar a agregação de valor cultural ao material coletado.
Durante a Exposição na COOPERLIX e apresentação das peças, buscamos intensificar a importância dos materiais que a COOPELIX tem fornecido para nosso trabalho no campo das artes plásticas e do artesanato étnico.
Os materiais e produtos que reaproveitamos são inócuos à saúde das pessoas e do meio ambiente e todo o processo de fabricação de objetos artesanais e de arte da cultura afrobrasileira, brasileira ou inspirados na cultura africana atendem aos princípios da originalidade, da confecção manual, do estudo e planejamento de cada linha de peças e principalmente no uso desse objeto como material de apoio pedagógico, valorizando a interculturalidade e promovendo dinâmicas que ajudem a organização de demandas entre quem pode produzir essas peças, a maneira de organizar essa produção enquanto buscamos pensar, de forma coletiva como melhorar a qualidade de vida de quem precisa sobreviver com a coleta desses materiais.
Não há dúvida de que o papel dos catadores é fundamental para que possamos repensar nossa maneira de interferirmos nas dinâmicas ambientais que estão afetando de forma negativa o planeta. Até para propormos novas maneiras de produzir e sobreviver é necessário registrar o que é impossível ficar a cargo dos catadores e recicladores, como o manuseio dos componentes eletrônicos, por exemplo, onde é preciso um treinamento mais acurado para fazer do reaproveitamento das peças e componentes eletrônicos uma atividade segura para quem manuseia e também para o meio ambiente.
São desafios que acompanham a circulação das sacolas, porque a gente dialoga com muitas pessoas e busca registrar soluções possíveis, fazendo o papel de intermediação de experiências. Trouxemos de uma cooperativa de Paracatu, idéias de agregação de valor que estamos organizando para que os cooperados daqui possam ter acesso.
É de fato a vivência mais ética possível da chamada pesquisa-ação.

Forcluídos
É um conceito que vivenciamos por alguns anos estudando psicanálise da educação em seminários organizados pela Profª Leny Magalhães Mrech da FEUSP e para mim ficou que: forcluídos, à partir dos conceitos de Lacan, são aqueles que embora componham a teia de relações sociais, ficam à margem dessa teia, sendo explorados eficientemente. Com o estudo da economia solidária é possível compreender que existam pessoas que não podem suportar a dominação de seus corpos. Não suportam o controle mais sutil e por isso eficiente de suas ações, tão estudado por Foucault, apresentado em Vigiar e Punir.
Então quebrar um circuito de “eu não quero saber de nada disso”, ou “isto não me diz respeito” exige um comprometimento que necessita ser vivenciado. Na verdade não é possível garantir que qualquer das ações que estamos intentando no campo cultural surta efeito a curto prazo. Nossa garantia é que estamos estabelecendo alguns laços. Os laços de comprometimento que é possível fazer por onde passamos é que colabora na quebra de algumas “cadeias de gozo”: a pessoa que está lamentando demais, com a cara carrancuda, reclamando, reclamando e ficando na dor de seu pior.
A arte impera nos seus sentidos. Ela quebra certas imobilidades e nessa quebra, abre brechas por onde o conhecimento estanque, avassala. A grande questão que nos incita é que, ao mexer com estruturas alienantes, doloridas, porém conhecidas, a gente firma um compromisso de responsabilidade, no conceito que Antoine de Saint-Exupéry divulgou em  “O Pequeno Príncipe”: “você é responsável por aquilo que cativas”.
Agora já nos metemos a cativar gentes daqui, de Almeirim e também de Paracatu, sem nenhuma garantia, a não ser um desejo forte de trabalho, de que poderemos dar continuidade ao que já temos iniciado. Sem uma formação de rede de trabalho, fica impossível atender demandas que provocamos nesses forcluídos. Há pessoas daqui do bairro, que não conseguimos trazer para o grupo, pois necessitam de monitoria especializada e não podemos assumir o transporte, o cuidado para levá-las em casa depois da sessão de cinema e um desafio que tem chegado com a possibilidade de iniciar um processo para implantar em Prudente, algumas sessões de cinema para cegos, que vai exigir um compromisso do poder público, das instituições e de outras pessoas que ainda não se sentem responsáveis pela construção social e com políticas de acesso.
Estando na finada Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural do Ministério da Cultura, em Brasília trouxemos para Pres. Prudente, publicações que possibilitam o início da experiência, mas para tanto estamos fomentando o Conselho da Igualdade Racial para então aglutinarmos forças com o Conselho da Pessoa Portadora com Deficiência de Presidente Prudente para mobilizar a Associação de Cegos e demais entidades daqui e aí sim, iniciar  mais esse trabalho.

Como discutir a apropriação da história dos povos africanos e afrodescendentes num contexto de leitura do mundo?
As sacolas que produzimos, além de possuírem toda uma história em seu processo de elaboração, são declaradamente utilizadas à partir de uma leitura de mundo: ética, séria, comprometida e com uma posição política! Não são neutras! Da mesma maneira como pensamos nas sessões de cinema (com títulos escolhidos cuidadosamente e depois de muita pesquisa), nas exposições, nas rodas de conversa, nas oficinas de trabalho e na opção por incentivarmos no coletivo as oficinas de teatro do oprimido. Cada escolha está empapada de nossas convicções políticas: “de que mudar o mundo é difícil, mas é possível!”  O termo  “freireano” só tem sentido se puder ser vivenciado até as últimas consequências, incluindo um diálogo, nem sempre acolhedor; principalmente de autoridades estabelecidas, ainda que sejam fruto de uma democracia de baixa intensidade, no dizer de [2]Boaventura de Sousa Santos.
Para uma intensa provocação, tivemos que realizar uma “graduação alternativa”. Não porque Florestan Fernandes não estivesse no referencial bibliográfico do curso de Sociologia da Educação, por exemplo; mas porque “O negro do mundo dos brancos”  não o compunha. Li, porque comprei e estudei; muito além do referencial presente no curso. Que dizer então de Octavio Ianni, Franz Fanon, Nei Lopes, Joseph Ki-Zerbo, Aimé Césaire, Carlos Moore, Beatriz Nascimento e tantos outros pesquisadores/as negros e negras que foram, sistematicamente boicotados/as na nossa formação, incluindo Paulo Freire, lido fora do contexto acadêmico, ainda que celebrado como “conhecido” nesse contexto da negação acadêmica. As indagações que essa leitura da negação provocou, necessitavam de uma resposta. E algumas dessas respostas precisam de materialidade, daí meu trabalho de recuperar na história das máscaras africanas algumas “sínteses imagísticas”.
Máscara Fang, pintura sobre madeira. Coleção Museu do Homem de Paris.         Portrait of Russolo, 1913. Coleção Particular.      
Peça Fang no Museu de      Portrait Of Russolo                            Peça que confeccionei em papel-machê
Paris                                      (coleção particular)                                 - ao lado vaso para ikebana
                      Desenho de Luigi Russolo          
Não foi preciso ler Raul Córdula[3]  para descobrir que a arte africana, brasileira e de outras localidades tinha sido apropriada por grandes, famosos e ricos artistas ocidentais. Quando comecei a estudar a arte africana descobri uma intensa semelhança entre Guernica de Pablo Picasso e a imagística Fang – povo que sobrevive em Gabão, Camarões e Guiné Equatorial.
Tive sérias dúvidas e me pus a pesquisar com mais eficiência, usando palavras-chaves e qual não foi minha surpresa ao saber que o Museu de Nova Iorque tinha já montado uma Exposição, composta por obras de Emil Nolde, Paul Gauguin, Henry Moore, Paul Klee, Henri Matisse, Mac Chagall, Max Ernest, Joan Miró, Amadeo Modigliani, Pablo Picasso e muitos outros artistas que usaram intensamente a arte africana, em uma época em que a ética era a do dominador e os povos explorados não tinham a internet para organizarem suas discussões e trocas de informação.
A questão que ficou e a gente pouco discute é: por quê essas informações continuam sendo sonegadas? E mesmo quando as informações são organizadas em artigos, eles estão recheados de expressões racistas como no de Leonor Amarante, na revista Brasileiros nº 5, de agosto de 2010 “Mergulho no primitivo para ousar na modernidade!”.
Ainda que pretensa à crítica a editora da revista flagrantemente desconhece as nuances profundas do artista africano e de como conseguiu compor peças com uma qualidade artística admirada (ainda que com ares de superioridade) por toda a sociedade acidental.
Dessa maneira adotamos o termo arte primeira, para destoar do termo “primitivo” que chega ao nosso universo carregado de uma carga ideológica negativa. Primeiro, primeira não importa muito para quem cria, mas arte também é engajamento político. Parte dessa luta pode ser realizada competentemente com a criação, divulgação e formação de público em literatura, leitura, artes plásticas e diversidade cultural.

Bibliografia

AGUIAR, Vera Teixeira. Conceito de leitura. In: Pedagogia cidadã: cadernos de formação: Língua Portuguesa. CECCANTINI & outros(orgs.)UNESP/ PROgrad, 2004, VOL. I.
ARTE! Brasileiros. Especial Primitivo Erudito Popular. Brasileiros nº 05: julho/agosto de 2010.
BRASIL/INEP. Matrizes do  Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja). MEC/INEP, 2002.
CRIA – Centro de Referência Integral de Adolescentes. Escola e Comunidade – um diálogo necessário.( CD), 2006.
CÉSARE, Aimé; Carlos Moore (org.). Discurso sobre a Negritude Miami 1987.Belo Horizonte: Nandyala, 2010.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Tradução de Enilce Albergaria Rocha & Lucy Magalhães. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
FINK, Bruce. O sujeito lacaniano - entre a linguagem e o gozo. Tradução de Maria de Lourdes Sette Câmara. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classe. Vol. 1. São Paulo: Globo, 2008, 5ª edição.
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Global, 2007.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir – história da violência nas prisões. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1998, 18ª edição.
FREIRE, Paulo. Cartas a Guiné-Brissau - registros de uma experiência em processo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, 4ª edição.
FREIRE, Paulo & GUIMARÃES, Sérgio. Sobre educação – diálogos. São Paulo: Paz e Terra, 1982, 4ª edição.
FREIRE, Paulo & Myles Horton. O caminho se faz caminhando - conversas sobre educação e mudança social. Petrópolis: Vozes, 2005, 3ª edição.
FREIRE, Madalena. A paixão de conhecer o mundo – relatos de uma professora. São Paulo: Paz e Terra, 2002, 15ª edição.
FRENETTE, Marco. Preto e branco – a importância da cor da pele. São Paulo: Publisher Brasil, 2000.
GERBER, Raquel; um filme de. Orí. Textos e narração de Beatriz Nascimento. Angra filmes: Brasil, 2008.
GOMES, Nilma Lino. Educação, identidade negra e formação de professores/as: um olhar sobre o corpo negro e o cabelo crespo. In.: Revista  Educação e Pesquisa, São Paulo: FEUSP, v. 29, nº1, p.167-182, jan/jun. 2003.
GUIMARÃES,  Antonio Sérgio Alfredo. Preconceito e discriminação: queixas de ofensas e tratamento desigual dos negros no Brasil. São Paulo: Editora34, 2004.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP &A, 2006, 11ª edição.
KI-ZERBO, Joseph. Para quando a África? Entrevista com René Holenstein. Tradução de Carlos Aboim Brito. Rio de Janeiro: Pallas, 2006.
KI-ZERBO, Joseph. História geral da África I. Metodologia e Pré-história da África.UNESCO/Min. da Educação do Brasil, 2º edição, Brasília, 2010.
KUPER, Adam. Cultura – a visão dos antropólogos. Tradução de Mirtes FRange de Oliveira Pinheiros. Bauru: EDUSC, 2002.
LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto. IN: ZILBERMAN, Regina (org.) Leitura em crise na escola.. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985, 5ª edição.
LOPES, Nei. Bantos, malês e identidade negra. Minas Gerais: Autêntica, 2006.
LOPES, Weber. Vamos ler um livro: iniciativa de um grupo juvenil. In: Políticas e Práticas de leitura no Brasil. Ação Educativa, São Paulo, 2003.
LUDKE, Menga & ANDRÉ, Marli. Pesquisa em Educação – Abordagens qualitativas. São Paulo:EPU, 1986.
MOORE, Carlos. A África que incomoda. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.
MUNANGA, Kabengele. O tráfico negreiro. In. Idéias, 27- a luta contra o racismo na rede escolar, p. 61-67. São Paulo: FDE, 1995.
MUSEU AFROBRASIL. Território ocupado – obras de Ciro, Melim, Nunca, Kboco e Speto. Curadoria de Saulo de Tarso e Emanoel Araújo. São Paulo: 2010/2011.
NASCIMENTO, Iracema. A leitura como moeda de trânsito social – entrevista com Marisa Lajolo. In: Políticas e Práticas de leitura no Brasil. Ação Educativa, São Paulo, 2003.
RIEFENSTAHL, Leni. Africa. Taschen: Alemanha, 2002.
ROSEMBERG, Fúlvia. Raça e educação inicial. In. Cadernos de Pesquisa, São Paulo: Fundação Carlos Chagas, v. 77, p. 25-34, mai. 1991.
SALUM, Marta Heloísa Leuba. África: culturas e sociedades. Publicado em
SANTOS, Boaventura de. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo: Boitempo, 2007.
SOARES, José Francisco & ALVES, Maria Teresa Gonzaga. Desigualdades raciais no sistema brasileiro de educação. In. . Educação e Pesquisa, São Paulo: Fundação Carlos Chagas, v. 29, nº1, p.147-165, jan/jun. 2003.
THIOLENT, Michel. Metodologia da Pesquisa-Ação. São Paulo;Cortez Editora, 2000.
Sites:
http://www.zyama.com/ - Museu em Illinois/EUA.
http://www.remnantsofritual.com/ - Arquivo da coleção Remanescentes de Rituais de David Gelbard  - o livro está esgotado há anos e não foi reeditado.


[1] Nzinga Afrobrasil, Arte, Educação, Cultura. Rua Amélia Sanches Matheus, 305 – Jardim Cambuci – Presidente Prudente/SP – Brasil. CEP 19045-020. ivoneteambiente@gmail.com e nzingaafrobrasil@gmail.com / Realização: FUNARTE – Fundação Nacional das Artes – Esta obra foi selecionada pela Bolsa FUNARTE de Circulação Literária. MinC/Brasil.
[2] “Que instrumentos temos? Na realidade, contamos só com instrumentos hegemônicos para tentar enfrentar tudo isso, porque os conceitos para enfrentar o novo, a descontinuidade, a ruptura, a revolução, hoje nós não temos. Os instrumentos hegemônicos que temos são as semânticas legítimas da convivência política e social: a legalidade, a democracia, os direitos humanos.(...) É um problema complicado porque, se são instrumentos hegemônicos, por definição não vão resolver nossas inquietações, nossas aspirações, e não vão conseguir o que queremos alcançar, que é uma sociedade mais justa, reinventar a emancipação social.” Boaventura de Sousa Santos, tradução de Mouzar Benedito, Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social, São Paulo, Boitempo, 2007, p. 84.
[3] Raul Córdula. Erudição e dominação. In.: ARTE! Brasileiros. Especial Primitivo Erudito Popular. Brasileiros nº 05: julho/agosto de 2010.


terça-feira, 17 de abril de 2018


Processo artesanal na produção de massa cerâmica

A cerâmica artesanal, historicamente é inspirada na produção de uma pessoa mais velha. Seu aprendizado tem sido realizado com uma mestra artesã ou com um mestre.
Nesta etapa vamos falar um pouco da identificação da base para produção da massa cerâmica.
Na região de Presidente Prudente temos um polo ceramista em Indiana, cidade a 40 km. A produção na cidade gira em torno de vasilhas de barro, sendo muito pequena a produção de cerâmica artística.
Mesmo assim, há pessoas interessadas na produção e algumas peças são comercializadas. Meu interesse pela produção de peças é devido ao meu trabalho com arte afro-brasileira. O desejo na produção de cerâmica foi principalmente à peças adquiridas em gesso quebrarem com facilidade. Acredito ser uma afronta uma peça votiva com tantos defeitos. Foi assim que produzi minhas primeiras peças.
Uso parte da argila comprada dos ceramistas de Indiana e parte de uma argila coletada diretamente no leito do rio. Faço uma mistura de mais ou menos 30% com a massa proveniente de Indiana (mas que é coletada em Presidente Epitácio).
A mistura deve ficar bem homogênea e então começa o processo de secar um pouco mais a massa, até que ela possa ter uma plasticidade suficiente para modelagem, sem que no entanto, esteja úmida demais.
Para diminuir a quantidade de água na massa cerâmica pode ser utilizada uma base com jornais velhos, com papelão, tecidos ou de gesso. Bater a massa sobre este materiais vai permitir que a massa possa ficar no ponto para a modelagem.


A peça em massa cerâmica também pode ser feita em um único bloco. Aí então ao invés de modelagem será feita uma escultura na massa. Este fato evita as rachaduras que se produzem nas emendas da massa. Diferenças entre a umidade de uma parte da massa já na peça e o acréscimo de massa também produzem rachaduras.

O Processo de maturação da peça

Enquanto a peça está sendo modelada, toda vez que for interromper o trabalho, borrife toda a superfície da peça com água pura e então recubra toda a peça com plástico. Feche bem, evitando entrar ar para outro dia de trabalho. Mantendo a peça úmida, você pode trabalhar na peça meses a fio.
Quando sentir que a peça está finalizada, coloque para secar em local protegido da chuva, doa animais de estimação, das crianças e de curiosos.
Tem pessoa adulta que enfia o dedo na peça para ver do que se trata e estraga o trabalho, então coloque em locais fora das vistas e do alcance da curiosidade.
A maturação da peça antes da queima leva de 1 semana até alguns meses, dependendo da temperatura ambiente. A umidade relativa do ar é fator decisivo nesta etapa. Quanto mais seco o ar, mais rapidamente a peça seca e isto pode causar rachaduras nas peças. 
Com o tempo e o uso da massa cerâmica, alguns segredos são revelados... Não há mágica, mas há muita mágica neste aprendizado.
Boa modelagem ou escultura.

quarta-feira, 11 de abril de 2018


Meus sentimentos: uma tradicionalista aprende com os elementos da sua ancestralidade quando os manipula
Ivonete Aparecida Alves







Foi assim que aprendi a linguagem do fogo. As línguas do fogo ao movimentarem-se ao vento desloca o ar e seu calor compartilha o que foi a árvore com o ambiente. Xangô presente. Mas foi de Onilé que a madeira veio e depois com as bênçãos de Yemanjá, a água foi sendo retirada e Nanã – a velha – recolhe para suas terras enlameadas a água que o fogo evapora. Uma queima de cerâmica tradicional é uma celebração da vida. Aprendi com Edson Carneiro que Ossaim é uma mulher e reflito que Onilé, a quem Olodumaré deixou o governo da Terra quase foi esquecida...
Mas existem diferenças entre a queima tradicional que realizo no presente e a manipulação do fogo que ainda é feita no continente africano, pelos homens guardiões da tradição. Segundo Amadou Hampatê Bá, os tradicionalistas são mestres de cultura, como consegui ser na diáspora. Mas meu aprendizado foi realizado por vias tão tortuosas e complexas como ainda é em África. É esta discussão, que envolve conhecimento tradicional, diáspora africana, processo escravizatório, libertação e feminismo negro que vou discutir neste texto, com toda a reverência que devo aos meus mais velhos e também às feministas negras, algumas minhas mais novas.


Meus pensamentos foram tomados, não de assalto, por várias reflexões que a releitura de Mestre Amadou Hampâté Bâ. O artigo é A tradição viva, que compõe o trecho de do Volume I - Metodologia e Pré-História da África, publicada pela UNESCO no Brasil. A sabedoria do escrito de Bâ me remeteu às lembranças da minha infância, repleta da espiritualidade de meus ancestrais, alguns bem perversos, outros tentando de todas as formas proteger minha vida. Já aos três anos guardo lembranças destes espíritos, com quem eu batia longos papos. Minha mãe, escondida do padre da paróquia, me levava à benzedeira, para ver se ela dava um jeito em mim. Dona Neide colocava um pano alvíssimo dobrado em várias partes sobre minha cabeça e  sobre ele uma garrafa transparente com um litro de água. Munida de um galho de alecrim ou de arruda ela rezava. Vez ou outra eu ouvia um murmúrio mais alto, rogando à Virgem Maria  e eu via uma Preta Velha. Por vezes enxerguei um Preto-Velho. Foi assim, vivendo entre o mundo dos espíritos e o mundo material, que comecei a aprender sobre meus ancestrais africanos e africanas. Muitos anos mais tarde a memória da escravização veio preencher as lacunas de meu aprendizado. Elas e eles me avisaram que seria uma longa batalha, mas que jamais me abandonariam e colocariam em meu caminho pessoas vivas e de outros planos para que eu aprendesse tudo o que fosse necessário para ensinar sobre a vida e principalmente sobre a construção de novas comunidades afrocentradas neste país e depois em outros lugares do mundo.
O sofrimento, lembra Pai Zumbi é passageiro, mas a luta pela melhoria é constante e deve ser feita, apesar de tudo o que for necessário para sobreviver com dignidade. “Ser uma pessoa bondosa, não deve fazer da gente um pessoa besta”. Eu sempre soube disto, mas ainda hoje, ao enfrentar o racismo de cada dia, ainda tenho vontade de matar vários racistas! E ele me lembra “De novo não, já tem sangue demais na sua história!”
Então vamos lá...
“A própria coesão da sociedade repousa no valor e no respeito pela palavra. Em compensação, ao mesmo tempo que se difunde, vemos que a escrita pouca a pouco vai substituindo a palavra falada, tornandose a única prova e o único recurso; vemos a assinatura tornar se o único compromisso reconhecido...” (Bá, 2010, p. 168). Mas apesar da profundidade destes ensinamentos, na diáspora fui enganada por toda espécie de gente com palavras falsas, então aprendi na prática, que são poucas as pessoas que de fato honram sua fala. Foi um aprendizado doloroso.
Tudo que aprendi a fazer com as mãos, em algum momento da vida, matou minha fome e também da minha filha, nascida em meio à lutas pela sobrevivência. Algo fugia.

 Retomando Bá: “A tradição africana não corta a vida em fatias e raramente o “Conhecedor” é um “especialista”. Na maioria das vezes, é um “generalizador”. Por exemplo, um mesmo velho conhecerá não apenas a ciência das plantas (as propriedades boas ou más de cada planta), mas também a “ciência das terras” (as propriedades agrícolas ou medicinais dos diferentes tipos de solo), a “ciência das águas”, astronomia, cosmogonia, psicologia, etc. Tratase de uma ciência da vida cujos conhecimentos sempre podem favorecer uma utilização prática”. (Bá, 2010, p.175).



Assim, fui aprendendo a plantar e colher, a fazer uma faxina bem feita, a lidar com equipamentos elétricos, papel e fibras naturais. Coisas e técnicas que se misturaram em cursos, professoras, pessoas que conheci e me ensinaram uma técnica, um ponto diferente ou o uso de um remédio. Uma bagunça do ponto de vista das escolas ocidentais. Ouvi isto de alguns professores, mas ouvi também que minha carreira profissional seria um sucesso com tanto conhecimento.
A perseguição a quem conhece da cultura negra é real e intensa também na diáspora, assim como foi e continua no continente africano:
“De maneira geral, os tradicionalistas foram postos de parte, senão perseguidos, pelo poder colonial que, naturalmente, procurava extirpar as tradições locais a fim de implantar suas próprias ideias, pois, como se diz, “Não se semeia nem em campo plantado nem em terra alqueivada”. Por essa razão, a iniciação geralmente buscava refúgio na mata e deixava as grandes cidades, chamadas de Tubabudugu, “cidades de brancos” (ou seja, dos colonizadores). (Bá, 2010, p. 176).

O fogo e o caminho de seu uso na diáspora
Que medo de uma queimadura com fogo! Frases repetidas por várias mães. E um fascínio pelo fogo que muitas crianças possuem. Senti na pele uma queimadura com fogo, mas ainda assim o fascínio continuou. No entanto, os segredos de uma queima transformando barro em cerâmica só fui desvelar em 2016, em uma oficina no Sesc Thermas de Presidente Prudente com artistas Deva Bhakta, , e Kleber José da Silva, em 2016. Que reencontro maravilhoso. Modelamos e queimamos no mesmo dia. Durante a semana consegui espaço para fazer uma fogueira e queimei meu primeiro Exu! Laroiê.
 “Ofícios artesanais tradicionais são os grandes vetores da tradição oral. Na sociedade tradicional africana, as atividades humanas possuíam frequentemente um caráter sagrado ou oculto, principalmente as atividades que consistiam em agir sobre a matéria e transformála, uma vez que tudo é considerado vivo. A atividade artesanal, em sua operação, deveria “repetir” o mistério da criação. Portanto, ela “focalizava” uma força oculta da qual não se podia aproximar sem respeitar certas condições rituais (Bá, 2010, p. 185).
Kleber, prudentino, foi aprender a usar a linguagem do fogo na Faculdade de Artes em São Paulo e Deva aprendeu com o professor em São João Del Rei em Minas Gerais e os dois nos ensinaram a queimar em Prudente. Conhecimento que gira.
Desde então retomei o que os meus ancestrais fizerem. Caso estivesse em África talvez tivesse que romper com uma tradição para torna-la viva. As mulheres em grande medida  eram mestres do fogo na confecção de vasilhas e utilitários, porém não foram citadas por Bá neste artigo. No entanto, ao ler seu texto, me senti comtemplada com suas histórias.
Quanto ao ferreiro tradicional, ele é o depositário do segredo das transmutações. Por excelência, é o “Mestre do Fogo”. Sua origem é mítica, e, na tradição bambara, chamamno de “Primeiro Filho da Terra”. Suas habilidades remontam a Maa, o primeiro homem, a quem o criador Maa Ngala ensinou, entre outros, os segredos da “forjadura”. Por isso a forja é chamada de Fan, o mesmo nome do Ovo primordial, de onde surgiu todo o universo e que foi a primeira forja sagrada.  (Bá, 2010, p. 187).
Assim, o artesão tradicional, imitando Maa Ngala, “repetindo” com seus gestos a criação primordial, realizava não um “trabalho” no sentido puramente econômico da palavra, mas uma função sagrada que empregava as forças fundamentais da vida e em que se aplicava todo o seu ser. Na intimidade da oficina ou da forja, participava do mistério renovado da criação eterna. (Bá, 2010, p. 188)
Em outra oportunidade vou completar este escrito...
Abraços,
Ivonete

Referências
Amadou Ampatê Bá. A tradição viva. In.: História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África / editado por Joseph.KiZerbo. – 2.ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010. 992 p. pp. 167-212.
Amadou Hampaté Bâ. A noção de pessoa na ... - Filosofia Africanahttps://filosofia-africana.weebly.com/.../amadou_hampaté_bâ_-_a_noção_de_pessoa_...): A NOÇÃO DE PESSOA NA ÁFRICA NEGRA. Amadou Hampaté BâAmadou Hampaté Bâ. A noção de pessoa na África Negra. Tradução para uso didático de: HAMPÂTÉ. BÂ, Amadou. La notion de personne en Afrique Noire. In: DIETERLEN, Germaine (ed.). La notion de personne en Afrique Noire. Paris: CNRS, 1981, p. 181 – 192, por Luiza Silva Porto Ramos e Kelvlin Ferreira Medeiros.