Meus
sentimentos: uma tradicionalista aprende com os elementos da sua ancestralidade
quando os manipula
Ivonete
Aparecida Alves
Foi assim que aprendi a
linguagem do fogo. As línguas do fogo ao movimentarem-se ao vento desloca o ar
e seu calor compartilha o que foi a árvore com o ambiente. Xangô presente. Mas
foi de Onilé que a madeira veio e depois com as bênçãos de Yemanjá, a água foi
sendo retirada e Nanã – a velha – recolhe para suas terras enlameadas a água
que o fogo evapora. Uma queima de cerâmica tradicional é uma celebração da
vida. Aprendi com Edson Carneiro que Ossaim é uma mulher e reflito que Onilé, a
quem Olodumaré deixou o governo da Terra quase foi esquecida...
Mas existem diferenças entre
a queima tradicional que realizo no presente e a manipulação do fogo que ainda
é feita no continente africano, pelos homens guardiões da tradição. Segundo Amadou
Hampatê Bá, os tradicionalistas são mestres de cultura, como consegui ser na
diáspora. Mas meu aprendizado foi realizado por vias tão tortuosas e complexas
como ainda é em África. É esta discussão, que envolve conhecimento tradicional,
diáspora africana, processo escravizatório, libertação e feminismo negro que
vou discutir neste texto, com toda a reverência que devo aos meus mais velhos e
também às feministas negras, algumas minhas mais novas.
Meus pensamentos foram
tomados, não de assalto, por várias reflexões que a releitura de Mestre Amadou
Hampâté Bâ. O artigo é A tradição viva,
que compõe o trecho de do Volume I - Metodologia e Pré-História da África,
publicada pela UNESCO no Brasil. A sabedoria do escrito de Bâ me remeteu às
lembranças da minha infância, repleta da espiritualidade de meus ancestrais,
alguns bem perversos, outros tentando de todas as formas proteger minha vida.
Já aos três anos guardo lembranças destes espíritos, com quem eu batia longos
papos. Minha mãe, escondida do padre da paróquia, me levava à benzedeira, para
ver se ela dava um jeito em mim. Dona Neide colocava um pano alvíssimo dobrado
em várias partes sobre minha cabeça e
sobre ele uma garrafa transparente com um litro de água. Munida de um
galho de alecrim ou de arruda ela rezava. Vez ou outra eu ouvia um murmúrio
mais alto, rogando à Virgem Maria e eu
via uma Preta Velha. Por vezes enxerguei um Preto-Velho. Foi assim, vivendo
entre o mundo dos espíritos e o mundo material, que comecei a aprender sobre
meus ancestrais africanos e africanas. Muitos anos mais tarde a memória da
escravização veio preencher as lacunas de meu aprendizado. Elas e eles me
avisaram que seria uma longa batalha, mas que jamais me abandonariam e colocariam
em meu caminho pessoas vivas e de outros planos para que eu aprendesse tudo o
que fosse necessário para ensinar sobre a vida e principalmente sobre a construção
de novas comunidades afrocentradas neste país e depois em outros lugares do
mundo.
O sofrimento, lembra
Pai Zumbi é passageiro, mas a luta pela melhoria é constante e deve ser feita,
apesar de tudo o que for necessário para sobreviver com dignidade. “Ser uma
pessoa bondosa, não deve fazer da gente um pessoa besta”. Eu sempre soube
disto, mas ainda hoje, ao enfrentar o racismo de cada dia, ainda tenho vontade
de matar vários racistas! E ele me lembra “De novo não, já tem sangue demais na
sua história!”
Então vamos lá...
“A própria coesão da
sociedade repousa no valor e no respeito pela palavra. Em compensação, ao mesmo
tempo que se difunde, vemos que a escrita pouca a pouco vai substituindo a
palavra falada, tornando‑se
a única prova e o único recurso; vemos a assinatura tornar‑ se o único compromisso
reconhecido...” (Bá, 2010, p. 168). Mas apesar da profundidade destes
ensinamentos, na diáspora fui enganada por toda espécie de gente com palavras
falsas, então aprendi na prática, que são poucas as pessoas que de fato honram
sua fala. Foi um aprendizado doloroso.
Tudo que aprendi a
fazer com as mãos, em algum momento da vida, matou minha fome e também da minha
filha, nascida em meio à lutas pela sobrevivência. Algo fugia.
Retomando Bá: “A tradição africana não corta a
vida em fatias e raramente o “Conhecedor” é um “especialista”. Na maioria das
vezes, é um “generalizador”. Por exemplo, um mesmo velho conhecerá não apenas a
ciência das plantas (as propriedades boas ou más de cada planta), mas também a
“ciência das terras” (as propriedades agrícolas ou medicinais dos diferentes
tipos de solo), a “ciência das águas”, astronomia, cosmogonia, psicologia, etc.
Trata‑se de uma ciência da
vida cujos conhecimentos sempre podem favorecer uma utilização prática”. (Bá,
2010, p.175).
Assim, fui aprendendo a
plantar e colher, a fazer uma faxina bem feita, a lidar com equipamentos elétricos,
papel e fibras naturais. Coisas e técnicas que se misturaram em cursos,
professoras, pessoas que conheci e me ensinaram uma técnica, um ponto diferente
ou o uso de um remédio. Uma bagunça do ponto de vista das escolas ocidentais. Ouvi
isto de alguns professores, mas ouvi também que minha carreira profissional seria
um sucesso com tanto conhecimento.
A perseguição a quem
conhece da cultura negra é real e intensa também na diáspora, assim como foi e
continua no continente africano:
“De maneira geral, os
tradicionalistas foram postos de parte, senão perseguidos, pelo poder colonial
que, naturalmente, procurava extirpar as tradições locais a fim de implantar
suas próprias ideias, pois, como se diz, “Não se semeia nem em campo plantado
nem em terra alqueivada”. Por essa razão, a iniciação geralmente buscava
refúgio na mata e deixava as grandes cidades, chamadas de Tubabudugu, “cidades
de brancos” (ou seja, dos colonizadores). (Bá, 2010, p. 176).
O
fogo e o caminho de seu uso na diáspora
Que medo de uma queimadura
com fogo! Frases repetidas por várias mães. E um fascínio pelo fogo que muitas
crianças possuem. Senti na pele uma queimadura com fogo, mas ainda assim o fascínio
continuou. No entanto, os segredos de uma queima transformando barro em cerâmica
só fui desvelar em 2016, em uma oficina no Sesc Thermas de Presidente Prudente
com artistas Deva Bhakta, , e Kleber José da Silva, em 2016. Que reencontro
maravilhoso. Modelamos e queimamos no mesmo dia. Durante a semana consegui
espaço para fazer uma fogueira e queimei meu primeiro Exu! Laroiê.
“Ofícios artesanais tradicionais são os
grandes vetores da tradição oral. Na sociedade tradicional africana, as
atividades humanas possuíam frequentemente um caráter sagrado ou oculto,
principalmente as atividades que consistiam em agir sobre a matéria e
transformá‑la,
uma vez que tudo é considerado vivo. A atividade artesanal, em sua operação,
deveria “repetir” o mistério da criação. Portanto, ela “focalizava” uma força
oculta da qual não se podia aproximar sem respeitar certas condições rituais
(Bá, 2010, p. 185).
Kleber,
prudentino, foi aprender a usar a linguagem do fogo na Faculdade de Artes em São
Paulo e Deva aprendeu com o professor em São João Del Rei em Minas Gerais e os
dois nos ensinaram a queimar em Prudente. Conhecimento que gira.
Desde
então retomei o que os meus ancestrais fizerem. Caso estivesse em África talvez
tivesse que romper com uma tradição para torna-la viva. As mulheres em grande
medida eram mestres do fogo na confecção
de vasilhas e utilitários, porém não foram citadas por Bá neste artigo. No
entanto, ao ler seu texto, me senti comtemplada com suas histórias.
Quanto ao ferreiro
tradicional, ele é o depositário do segredo das transmutações. Por excelência,
é o “Mestre do Fogo”. Sua origem é mítica, e, na tradição bambara, chamam‑no de “Primeiro Filho
da Terra”. Suas habilidades remontam a Maa, o primeiro homem, a quem o criador
Maa Ngala ensinou, entre outros, os segredos da “forjadura”. Por isso a forja é
chamada de Fan, o mesmo nome do Ovo primordial, de onde surgiu todo o universo
e que foi a primeira forja sagrada. (Bá,
2010, p. 187).
Assim, o artesão
tradicional, imitando Maa Ngala, “repetindo” com seus gestos a criação
primordial, realizava não um “trabalho” no sentido puramente econômico da
palavra, mas uma função sagrada que empregava as forças fundamentais da vida e
em que se aplicava todo o seu ser. Na intimidade da oficina ou da forja,
participava do mistério renovado da criação eterna. (Bá, 2010, p. 188)
Em outra oportunidade
vou completar este escrito...
Abraços,
Ivonete
Referências
Amadou Ampatê Bá. A
tradição viva. In.: História geral da África, I: Metodologia e pré-história da
África / editado por Joseph.Ki‑Zerbo.
– 2.ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010. 992 p. pp. 167-212.
Amadou Hampaté Bâ. A
noção de pessoa na ... - Filosofia Africanahttps://filosofia-africana.weebly.com/.../amadou_hampaté_bâ_-_a_noção_de_pessoa_...):
A NOÇÃO DE PESSOA NA ÁFRICA NEGRA. Amadou Hampaté Bâ. Amadou Hampaté Bâ. A noção de pessoa
na África Negra. Tradução para uso didático de : HAMPÂTÉ. BÂ,
Amadou. La notion de personne en Afrique Noire. In: DIETERLEN, Germaine (ed.).
La notion de personne en Afrique Noire. Paris: CNRS, 1981, p. 181 – 192, por Luiza Silva Porto Ramos e Kelvlin Ferreira
Medeiros.