quinta-feira, 23 de novembro de 2023

 CARRO AFRO


Era somente um corsinha já bem rodado. Cuidamos muito bem dele. O motor recebeu um bom trato, algumas peças internas foram trocadas, assim como locais com trincos receberam reparos. As capas dos faróis foram trocadas e as borrachas do para-brisas também foram trocadas. As bases em metal foram pintadas.

O plano de pintar um carro nasceu com a pesquisa sobre as Mulheres Negras Artistas. A inspiração de Mama Esther Mahlangu da África do Sul foi decisiva. Ela nasceu em 1935, na comunidade Ndebele, que está no território conhecido como África do Sul. Na tradição Ndebele a mãe ensina a filha a pintar à mão livre há muitas gerações. Para casar a menina precisa já ter aprendido a pintar sua casa com as tintas da natureza de seu entorno. Há pouco tempo estas mulheres incluíram a pintura com tintas comerciais.


Em 1989, Mama Esther participou de um evento com artistas do mundo todo, em Paris, chamado, Mágicas da Terra, onde pintou edifícios públicos com a arte de sua ancestralidade. Depois foi convidada a pintar carros chiques. Ela usa tintas de vinil de alto contraste na pintura de carros.

Durante mais de 10 anos acompanhei e estudei os traços de Mama Esther, mas não só. Arthur Bispo do Rosário, El Anatsui, Sonia Gomes, Ayeola Moore, Nene Surreal, Mickalene Thomas, Rosana Paulino, Renata Felinto, Barbara Chese Riboud, Lena Martins e outras mulheres da cooperativa Abayomi estiveram presentes em várias fases da minha pesquisa.


Com certeza a ousadia de Arthur Bispo do Rosário foi o que mais me animou na produção do carro Afro. Eu me questionava: Quais tintas utilizar? Quais técnicas seriam necessárias para o interior do carro e quais técnicas seriam necessárias para o exterior do carro?

As pesquisas apontavam para tintas caras e processos industriais de pintura e a gente que é da periferia e pobre não tem condições de pagar pintura cara. Então o jeito foi experimentar. Usei várias tintas na pintura do metal, desde tinta a óleo para pintura de tela (a base de óleo), até tintas PVA a base de água.

pintura a tinta óleo, com retoques em tinta PVA - acabamento em verniz spray





símbolo adinkra Aya produzido com carimbo (tinta a óleo, retoque com pincel Posca) - as sementes da samambaia foram feitas com tinta acrílica em pasta


na parte traseira outra Aya com tinta relevo dimensional brilhante metálica



Aqui usei tinta acrílica no amarelo, spray em lata em azul, amarelo, vermelho e o carimbo com preto Fafanto é com Betume da Judeia - No pegador usei tinta PVA Metal Ferro



As calotas foram pintadas em duas etapas com tinta spray  em lata, vermelha, protegendo os parafusos
A parte  em plástico foi colorida com tinta PVA brilhante

onde houve um dia o logo do Corsinha fiz esta peça com a tampa do vidro de requeijão

Em alguns locais a lataria do carro estava bem enferrujada. Usei lixa de metal e depois de uma pintura de base com tinta spray ou PVA apliquei massa Epoxi. Colori e fui aplicando contas, búzios africanos e nacionais e outras pecinhas que ganhamos. Temos potes e potes com sobras de diversos carnavais, procissões para Nossa Senhora e das festas de Orixás de Candomblés, Umbandas e outras manifestações. Tem conta azul de Nossa Senhora ao lado das contas de Exu. Tem sobras das roupas de Oxalá, com espelhinho de Osun. É um Xirê.


As capas dos bancos do carro





Tirei as capas e lavei. Depois remendei onde precisava e coloquei os amarrios que soltaram. Aí fui rever o livro com o trabalho de Sônia Gomes, que usa muitos tecidos na confecção de suas obras de arte. Compus a capa do banco com sacolas já produzidas pela minha irmã Lena e muitos fuxicos já prontos. No centro coloquei um porta papel que desmanchei. Depois apliquei bonecas Abayomis.

Nos bancos da frente apliquei tecido africano, conhecido como capulana,  na parte do encosto e assento.



A parte de trás da capa tem um símbolo adinkra colorido, sobre o tecido pintado.

No caso a pintura acelerou bastante o processo de afrocentrar o carro, pois se fosse para bordar todas as capas haveria necessidade de muito mais tempo de trabalho.


A traseira do carro

Sankofa em tinta acrílica em bastão, pote e PVA

Ayla em tinta relevo




Há vários detalhes para serem trabalhados no carro, mas penso que já consegui desenvolver várias técnicas para pintura em carro e para a decoração externa e interna. Olhando as obras em tecido Bakuba também penso em utilizar a tecelagem e o colorido natural nos tecidos para produção de capas internas em veículos.

Este projeto ainda será replicado em cursos de formação para pessoas que queiram aprender a pintar suas bicicletas, motos ou carros.

Quando eu disse que iria pintar um carro, uma amiga minha pensou que era um carro de brinquedo. Ele anda pelas ruas da cidade de Presidente Prudente e já estivemos em Assis, com olhares e muito atentos e várias perguntas da curiosidade humana.

Quer aprender?

Vem para o Mocambo.