segunda-feira, 26 de setembro de 2022

 CURADORIA E PRODUÇÃO EM ARTE NEGRA - I (antes da prosa)

Ivonete Aparecida Alves


Durante este tempo de mais de 20 anos, fui constituindo um trabalho em arte negra inspirada por vários artistas, essencialmente mulheres negras artistas, cujo trabalho tem sido desprezado, pouco divulgado e até mesmo boicotado. Quando estudamos as referências bibliográficas dos processos seletivos para as Faculdades de Artes, é praticamente nula a presença destas artistas pretas como material de estudo nas provas.

Contra este Racismo Institucional acadêmico, é preciso uma organização muito bem articulada produzida e conduzida por nós artistas negres, pois a branquitude não irá se responsabilizar por esta "lição de casa". Vez ou outra, para cumprir as cotas,  uma preta, um preto ou indígena será contemplado como uma espécie de "esmola" para o povo preto ou para os Povos da Terra.

Então façamos nós.

Esta conversa organizada também está sendo registrada por escrito para contribuir na formação de outras pessoas que desejam aprender sobre arte negra e não pôde ainda, elaborar um roteiro de pesquisa.

Devo acrescentar que a primeira experiência de organização deste trabalho aconteceu em 2021 na Semana de Educação promovida pelo CAP - Centro Acadêmico de Pedagogia da Faculdade de Educação da Unicamp, no formato on-line. Propus um mini curso em dois encontros onde apresentei algumas destas artistas para um grupo muito animado de mulheres e homens estudantes da UNICAMP.

O entusiasmo de algumas garotas negras narrando o completo desconhecimento de artistas já históricas na cena da arte preta por mulheres, me fez mergulhar por um tempo nesta pesquisa. Porém era preciso mais. Pensar na Curadoria e na Produção de exposições, com a elaboração de um processo formativo para outras pessoas negras, que historicamente têm sido impedidas de ter acesso à arte.

Fez parte das minhas lições de pesquisa elaborar uma lista de artistas e esta lista foi sendo ampliada. Muita gente boa ficou ainda sem um estudo mais cuidadoso, mas tenho me empenhado em arrebanhar informações, fotos de obras, vídeos e histórias destas pessoas.

Um mostruário de artistas que  me inspiram tem:

Mama Esther Mahlangu  - África do Sul

Ayeola Moore - (nascida na Guadalupe) Salvador/Brasil

Sonia Gomes - MG/Brasil

Arthur Bispo do Rosário - (Japaratupa - Sergipe) Brasil

El Anatsui - Gana

Nenê Surreal - São Paulo/Brasil

Mickalene Thomas - EUA

Maria Auxiliadora - Brasil

Barbara Chase Riboud - EUA

Laura Wheeler Waring - EUA

Edwige Apoglan - Benin

Ayrson Heráclito - Brasil

Renata Felinto dos Santos - Brasil

Faith Ringgold - EUA

Rosana Paulino - Brasil 

Estas pessoas artistas já dariam para alguns anos de pesquisa, então vamos introduzir a questão que nos anima neste tempo: A Curadoria e a Produção de Arte Negra.


Os processos de ensinagem que contribuem para  a Produção de Arte Negra

Começamos o Curso de Arte Negra com algumas prerrogativas já definidas, no sábado, dia 03 de setembro de 2022:

- participando somente pessoas da proximidade do Mocambo Nzinga;

- compramos uma série de materiais que são necessários para um início de atuação nas Artes Plásticas;

- o convite foi direcionado para um grupo de 10 pessoas ( o máximo que os recursos do Edital pode suprir).

Ficamos então com a seguinte equipe:

Agnaldo Júlio de Paiva; Silvana Regina Fermino do Nascimento; Alexandra Ribeiro do Nascimento; Sandra Aparecida Paulino; Aline dos Santos Pereira (adultos); Alícia Vitória Fermino do Nascimento; Alexia Mel do Nacimento Brito; Saymon Augusto do Nascimento Paulino e Silas Ramon do Nascimento Paulino (crianças). E Pérola Paulino, que tem 7 anos compondo o grupo.


Então já tínhamos decidido que era preciso ser uma equipe intergeracional, pois as mães para participarem precisam que as crianças estejam por perto. 

O primeiro exercício de aprendizado sobre as possibilidades do material de uso em artes:



Exercício para uso dos materiais

Distribuídos lápis de cor, canetinhas, giz pastel oleoso, tinta guache, régua, lixa, lápis preto, canetas, borrachas, pinceis e a apostila, vários tipos de papeis especiais para desenho, tivemos o momento de curtir todo o material. Da mesma forma que só pude conhecer vários materiais para arte depois de adulta, as mulheres daqui do Mocambo também não conheciam vários destes materiais.

O exercício acima foi proposto para que o grupo pudesse comparar os resultados estéticos de cada um destes materiais.

Cada espaço foi preenchido com um tipo diferente, possibilitando que em uma única folha houvesse várias opções de resultado sendo visualizado, inclusive a proposta de que um dos espaços estivesse com as tinturas naturais. No caso fornecemos aquarela de açafrão, urucum e folhas de árvores.


Silvana e Alícia (mãe e filha)

Nesta etapa o grupo já tinha entrado em contato com a Apostila onde estão representados alguns artistas negres que estão na base da constituição das inspirações sugeridas para a Residência Artística.

Obra minha: AFROAKOMA, inspirada na obra de Arthur Bispo do Rosário: Butões para paletó, sobretudo e pereline

Bispo com seu manto: fonte original: museubispodorosário.com 


Cada pessoa do grupo pode escolher, neste primeiro momento a obra que deseja produzir. Um dos participantes,  que já participou de outro curso de artes aqui no Mocambo recebeu uma encomenda: escolher três pessoas negras para retratar numa base de madeirite, onde poderemos interferir depois.

As escolhas estéticas da Sandra

À partir deste exercício eu propus a ela que desenhasse a imagem central (em azul e vermelho) numa tela. Lembrando que todas as bases para os quadros são de material reaproveitado. (Estas telas que estamos utilizando foram propagandas que eu encontrei nas ruas centrais de Pres. Prudente, recolhi, higienizei e depois recobri as propagandas com massa acrílica).



Obra minha em constituição com símbolos adinkras Epa e Asasse Ye Duru


A obra acima foi produzida sobre uma tábua de demolição. Uma amiga, administradora de um estacionamento recebe doações de fregueses e quando chega um lote de madeiras ou outros objetos que ela já sabe que utilizamos, ela reserva para nós. Neste caso, havia no lote madeira, madeirite, compensado, aglomerado e duas estantes já prontas, que adotamos para guardar as tintas, pencéis, colas de uso comum durante a Residência.
 Nesta obra acima, escolhi a inspiração de Mama Esther Mahlangu porque a simbologia do povo ndebele combina muito com uma estética que não está abrigada nas medidas de telas usualmente comercializadas no Brasil.
Então repeti algumas vezes os símbolos usados, também utilizando uma tabela de cores que estas mulheres da África do Sul já incorporaram em suas obras de arte.


Curadoria antecipada

Propor o exercício de produção da obra de arte em consonância com a produção da Exposição é um desafio, pois as pessoas que ainda não puderam compor suas obras de artes ficam afoitas para materializar alguns sonhos. Neste ponto foi importante ter duas crianças residentes de artes que já estão comigo tem alguns meses. Já viveram esta euforia de produção e então podemos propor a produção de obras e também já pensar na produção da Exposição de Arte,  com as obras que estão sendo elaboradas.
Para tanto visitei o local onde agendamos a Exposição no Museu Histórico de Presidente Prudente, verificando o espaço disponível e como faremos uma Exposição de obras de artes, que possui também no momento mesmo da Exposição uma Mostra Didática. Uma meta é que as obras de arte da mostra didática tenham o mesmo cuidado de elaboração que minhas obras artísticas, sem que cada pessoa possa manter seus desejos de trabalhos já pensados ou sonhados.


  

Obra da Mel    -                    Obra do Saymon

Nos encontros de pintura e estudo há sempre um incentivo para que pensem no resultado que desejam conseguir, usando o que já foi estudado em encontros anteriores. A chamada para que estudem a apostila e conheçam a obras das artistas negras que estão inspirando seus trabalhos sempre é feita.
No entanto, eu sei que quando uma pessoa de fora de nossos círculos de relação questiona o que estão aprendendo e o que estão fazendo há um interesse maior no estudo dos materiais disponibilizados.
Como são crianças ainda, tenho pedido para que leiam, mas chega um momento em que faremos a leitura sistematizada da apostila, par que possam constituir seu próprio método de estudo já sabendo e exercitando algumas possibilidades.


A experiência anterior com a produção de obras artísticas das crianças tem revelado o quanto os exercícios são importantes para pensar arte. Nosso exercício foi produzir máscaras em papel machê, com base nas imagens do livro de pesquisa Arte Africana de Frank Willett, publicado no Brasil pelas Edições SESC.
 
Obras inspiradas na arte do povo Fang (Congos)  Saymon   -    Mel        
                                                           
O primeiro exercício desta Residência Artística foi propor o conhecimento sobre os materiais. A estética dentro do pequeno espaço da folha me possibilitou olhar com cuidado para alguns dos resultados que surgiram. Diante das dúvidas de algumas pessoas ou mesmo porque o resultado do exercício foi notável, eu propus que houvesse a reprodução numa tela maior. Lembrando que estamos trabalhando como base para a produção das obras, com material encontrado em caçambas ou nas ruas da cidade.

Neste exercício a Sandra me falou que gosta muito de arte abstrata e na sua  folha de testes ela produziu uma combinação de cores muito interessante. Propus a ela que colorisse o fundo da tela com tintura de acafrão. Na aula seguinte propus que ela de fato usasse uma telha já colorida com açafrão de fundo e então sobre a tela já colorida utilizasse a pintura com as mesmas formas e cores do exercício, daí usando medidas com régua.
Deste estudo dela poderá sair uma bela obra completamente inédita.


Nesta etapa da Residência Artística já podemos saber qual caminho cada artista está escolhendo para suas produções.

Algumas de nossas inspirações:

Obra de Rosana Paulino


Obra de Edwige Aplogan - Benin
Edwige Aplogan no Catálogo de Exposições do Museu Afrobrasil




Os avanços no enegrecimento da obra


As simbologias adinkras foram constituindo-se em material precioso para aprender arte negra. Estes símbolos ancestrais possibilitam muitas atividades didáticas dentro da obra artística, sem descaracterizar as escolhas iniciais das pessoas que estão envolvidas tanto na produção da obra de arte, como na produção da Exposição, ou seja na sua curadoria.


 
       Wawa Aba                            Símbolo Wawa aba estilizado         símbolo na obra do Saymon
(Ela é forte e resistente como a árvore wawa. Símbolo da força física, resistência e perseverança.)

Quando a parte central da obra do Saymon estava já delineada com os formatos e cores   (ele escolheu a obra de Mama Esther Mahlangu como inspiração), eu sugeri que ele escolhesse no livro de Elisa Larkin Nascimento e Carlos Gá um símbolo adinkra que pudesse compor seu trabalho.
Antes disso procurei nos carimbos adinkras que temos prontos no acervo do Mocambo e só encontrei símbolos adinkras com formatos arredondados. Neste caso, estamos levando em consideração mais a estética que o significado dos símbolos.

fonte: http://claudio-zeiger.blogspot.com/2012/02/wawa-aba-simbologia-adinkra.html


Carimbos adinkras na produção de arte negra

Instigada pela necessidade de constituir um acervo de trabalho com arte negra e também de poder produzir oficinas significativas eu fui buscar por carimbos adinkras, em 2018. Encontrei alguns sites que importavam estes carimbos de Gana, mas os preços não cabiam no nosso orçamento. Então aproveitei sobras de madeira e sobre do maldito EVA  que as escolas públicas compram aos montes e depois descarta muitas sobras para produzir os carimbos

 



Produzi carimbos com os seguintes símbolos adinkras: As 4 formas do Sankofa; Adinkra Hene, Osram Ne Nsromma a lua e a estrela; Aya - a folha da samambaia; Akoben - o punhal do carrasco; Assasse Ye Duru - dois corações que equilibram a terra; Duafe - o pente de madeira; Dono o tambor falante; Akoko Nan - os pés da galinha e  Odo nyera fie kwan - a máscara do amor; compondo 10 símbolos adinkras. Produzi também um folder com as imagens e correspondentes significados destes que foram distribuídos aos participantes da oficina que ofertei no Sesc Thermas de Presidente Prudente. Na época o produtor cultural Nilo solicitou a compra de cmisetas de boa qualidade para que cada participante pudesse estampar sua própria camiseta. Foi um sucesso. 


ARTE EM TEMPOS SANKOFADOS

O  sankofa é um símbolo adinkra cuja  forma correspondente ao pato nos diz que é preciso ter os pés no presente, andando para frente, sem nunca esquecermos do passado. assim, a Pérola esteve presente  nas atividades do Mocambo desde muito bebê.
Sua mãe, irmã, prima primos também frequentam nossas atividades. Este fato fez  com que ela e também outras crianças crescessem sabedoras de suas potencialidades, incluindo a capacidade de produzir arte.

Os desenhos de Pérola:

   

Agora com 7 anos, a Pérola já possui muita segurança para dizer de suas obras. Então, como ela pinta com rapidez eu já me intrometo nas suas produções. A tela  em madeira de demolição foi seu segundo desenho na Residência Artística. Toda criança acaba ficando muito cansada quando realiza uma tarefa que exige. Como nossos encontros são livres a hora que cansa vai brincar de outra coisa ou vai para casa, para o parque, assistir filmes, etc.
Depois de outros dois encontros que ela pode pintar o que quisesse, eu pedi a ela que contornasse sua tela com tinta preta. Cada desenho que ela fez. Gostei muito do resultado estético de sua obra. Meu pedido não descaracterizou a obra da Pérola, mas ela já sabe que algumas lições de pintura não termina quando termina aquele dia de aula.
Eu reiterei que a folha com os exercícios didáticos era para que soubesse como fica os desenhos com cada material diferente. Para ela esta informação não significa nada. Quando ela quiser ela experimenta outra vez para ver como é que fica. Então ela me deu sua folha de exercício didático, assim como me deu seus desenhos de menina com botas de salto alto.


Quando a negritude precisa de espaço na arte

A História da miscigenação no Brasil é a história da violência contra as mulheres indígenas e negras. O abuso sexual sempre foi uma arma de guerra contra o povo preto e com o passar dos séculos, estas histórias foram sendo romanceadas porque encarar de frente tanto ódio racista é para poucas pretas. 
É uma dor necessária. Impossível acreditar no potencial da arte negra sem encarar-se ou como pessoa negra ou como pessoa branca que usufrui dos privilégios da branquitude (portanto usufruto da exploração do processo escravizatório). As histórias de pessoa branca boazinha não existe! É lenda muito bem articulada para continuar mandando no pedaço!

Assim, quando uma mulher negra de pele clara ou somente com traços negróides sonha com olhos verdes ou azuis é preciso considerar todos os séculos de estupro como arma de guerra. Um tipo de estupro que é físico, mas também um tipo de violência que é camuflada no "desejo forçado". Chamo de desejo forçado aquele desejo que a pessoa negra retinta ou negra de pele claro possui de ter ao  menos um traço do grupo opressor. Os olhos verdes ou azuis é dos traços mais desejados.

A arma de guerra contra o povo negro continua sendo as propagandas e as imagens de todo tipo que coloca o tipo físico branco, com olhos claros no modelo único de humanidade. Um  ou outro quer aparece nas propagandas é para cooptar o grupo preto mais consciente de sua negritude a não organizar uma enérgica oposição.
 
Para pensar na arte negra como possibilidade de defesa contra estes modelos opressores é necessário um tempo sankofado longo. Nem sempre é a geração de pessoas adultas que conseguirá fazer o giro para lutar contra estes modelos na arte que produz. Este processo acaba tendo que respeitar o tempo par o conflito necessário surgir e ficar para contribuir na assunção identitária negra e também na assunção identitária branca. A branquitude precisa saber e ter profunda consciência de que seus atos nos momentos decissórios são fundamentais para a continuidade da vida no planeta.
É muito cômodo vir com o discurso de que são as pessoas pobres as responsáveis por suas decisões, quando estas pessoas precisam lutar muito por uma migalha de respeito. É as faltas e as ausências que faz com que mulheres e homens negros se identifiquem com quem os oprime. "Eu quero ser como ele: branco, de olhos claros, rico e que fala o que pensa, sem nenhuma consequência imediata"...
Acontece que uma pessoa pobre, preta retinta ou preta de pele mais clara NUNCA será de olhos claros, e dificilmente será rica e se ousar falar o que pensa será encarcerada ou morta. Esta é que é a realidade!

Então faça arte, mas saiba como articular sua arte com sua realidade. Pense. Reflita. Pondere. Veja os modelos de nossas artistas negras mais velhas e considere a produção destas mullheres negras como sendo um grande tesouro que elas nos legaram.


Fazer e refazer até aprender ou se dar por satisfeita

 
       Obra da Silvana                                                       Obra da Alícia

Uma das questões que me chama muita a atenção nesta Residência Artística é a variedade de cores e formatos que as imagens ilustram. Sempre me deixou profundamente incomodada as aulas de arte onde todas as pessoas faziam exatamente a mesma coisa, exatamente das mesmas cores. E quem estava na coordenação das aulas ainda afirmava que era o único jeito de todos os alunos aprenderem. Difícil acreditar.

Como nós conseguimos uma variedade de pessoa e também uma variedade de informações sobre as pessoas desta residência artística antes mesmo de seu início as propostas são para que cada um avance de acordo com seu tempo de exercícios e também com suas disponibilidades.

Assim, cada pessoa pode retornar e ir exercitando suas habilidades, reelaborando suas obras. Em alguns casos, é preciso uma fórmula do passo, como no quadro da Alícia, que já fez uma tela muito parecida com esta em uma outra atividade ano passado aqui no Mocambo.

Sua mãe, Silvana foi quem pediu muito para que nós ofertássemos um curso de arte. Então é a responsável direta pela escolha do nosso projeto "Abre Alas Negritude"

Parabéns às duas malungas que estão na pegada de produzir arte negra em família!










                                                 

               








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